domingo, setembro 12, 2004
AS RELIGIÕES E O ANTICAPITALISMO
Confesso já uma possível miopia intelectual: não consigo de forma alguma estabelecer ligação íntima entre liberdade e cristianismo, mais novo modismo da neodireita virtual. Não digo que seja impossível a cristão associar-se ao ideário liberal, havendo incompatibilidades doutrinárias entre a Revelação do palestino e a revelação austríaca- faltam-me conhecimentos sobre as escrituras de um e outros para afirmação dessas. Mas me parece claro que ser religiosa a sociedade nada diz sobre o grau de liberdade dessa, como espero ter bem exposto no artigo abaixo. Pelo contrário, nos momentos históricos nos quais as consciências humanas mais fortemente estavam entranhadas pela fé produziram-se os grandes genocídios, perseguições e restrições a liberdades em nome do Pai: as Inquisições Católicas e suas similares protestantes, menos propaladas mas igualmente terríveis- notadamente em Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos; e ainda hoje os resqüícios de restrições a liberdades e isonomia jurídica que persistem nas democracias laicas ocidentais não raro bebem diretamente em "argumentos" religiosos, exemplo máximo na oposição à união civil homossexual. Assim não me parece de forma alguma o liberalismo devedor do cristianismo, menos ainda das religiões- pelo contrário, foi exatamente combatendo a atuação dessas na esfera pública que o liberalismo deu seus primeiros passos. Se o indivíduo quer se afirmar liberal mesmo que negue a dois contribuintes adultos o direito de firmarem contrato marital, problema dele. Mas que os Cordeiros da fé aprendam que a opinião contrária não faz de você um esquerdista deplorável, agente da ONU ou algo assim, pelo contrário: te põe absolutamente condizente com o legítimo ideário liberal.
Apesar dessa minha negativa ao modismo- tão lindamente propalado pelo cada dia mais exótico Mídia Sem Máscara- é inegável que as religiões exercem profunda influência nas mentalidades humanas não apenas no âmbito restrito da ligação com o divino, mas também nas posições dos fiéis perante a sociedade- aí inclusas as posições políticas. Ainda que os sacerdotes, guias e similares palavra alguma dissessem sobre o tema já haveria profunda influência, posto que os Doutores das principais crenças ocidentais deixaram comentários vários sobre a ordem temporal, e as próprias Escrituras tratam de aspectos éticos e morais que podem bem assumir conotação política- legitimar ética e teologicamente a propriedade é legitimar também politicamente sistemas que nela se apoiem. É por tal capacidade das crenças influírem sob a política- amplificada tremendamente quando seus líderes passam a atuar explicitamente como doutrinadores ou cabos eleitorais- que achei necessário passar aos senhores uma quase coincidência editorial a respeito.
REFORMADOR, mensário da Federação Espírita Brasileira. Nada muito interessante, espaço de divulgação da auto-ajuda em que o espiritismo se transformou no Brasil; mas tendo o pai como assinante vez ou outra decido dar uma lida. Folheando a edição de setembro me deparo com título que promete: EMPRESAS, texto de suposta autoria do espírito Joanna de Ângelis, supostamente psicografado pelo suposto médium Divaldo Franco, expoente do espiritismo em âmbito não apenas nacional. Sendo objetivo e cético, texto de autoria de Divaldo Franco.
E o que é o texto? Uma peça semi-socialista, na qual as empresas aparecem como locais pavorosos, máquinas nas quais os seres humanos são apenas engrenagens descartáveis. Sem amor, misericórdia, compaixão. Aquelas que se dedicam a programas sociais não raro exploram muito mais seus trabalhadores do que benefícios que concedem a outros; "é verdade que facultam o progresso na Terra, mas também respondem por muitas misérias e violências morais, econômicas e sociais...". Isso é o texto, um ataque às empresas, ou seja, um ataque ao capitalismo em última instância. Mas não ficamos por aqui, essa é apenas a primeira parte; na segunda, contrapõe-se esse terrível modelo empresarial exatamente ao trabalho para Jesus, para edificação e promoção de seus ensinamentos! Ou seja, deve-se atuar de uma forma quando ator da "empresa de Jesus", forma essa diametralmente oposta àquela exigida pelas empresas do mundo- e, por consegüinte, pelo sistema capitalista. Quem não concordará que há algo errado com essas empresas terrenas?
A coincidência editorial surge agora: CATOLICISMO, mensário outrora ligado à TFP, hoje produzido pelos integrantes desta opostos aos Arautos do Evangelho que hoje dirigem a entidade. Edição de agosto, matéria de capa, denúncia do "miserabilismo", a crença de que ao ser humano basta o mínimo necessário à sobrevivência, ou pouco mais do que isso. Repúdio ao luxo, à riqueza. A matéria traz algo tão óbvio quanto aterrador: esse miserabilismo é difundido em grande parte pela chamada "esquerda católica", teólogos da libertação, CNBB e similares. Frase de Leonardo Boff, o mesmo que clamou por mais aviões atirados contra os EUA: disse ele que "uma sociedade verdadeiramente comunista, no sentido bíblico da palavra", deve almejar não "um socialismo da abundância, mas da pobreza".
Que conclusões podemos tirar dessas matérias? Que a religião tradicional do Brasil, que apesar do declínio acentuado conta ainda como fiéis, ao menos nominais, mais de 70% da população, propaga pela voz de alguns de seus próceres- bem midiáticos, e de alcance até em meios não-católicos- uma doutrina anticapitalista. Que a eles se somam no coro talvez o mais conhecido médium espírita pós-morte de Chico Xavier no Brasil, homem de grande influência sobre os cerca de 7 milhões de kardecistas brasileiros, em sua maioria pessoas de boa renda, escolaridade e não raro formadores de opinião. Considerando-se a influência já citada das religiões sobre um país em que apenas 1% dos habitantes se declaram ateus, tem-se a conclusão final a que chego: boa parte do anticapitalismo crescente em nosso povo não resulta de adesão à doutrina comunista, que a maior parte desconhece; nem se deve a leitura de esquerdistas da Academia, também amplamente desconhecidos; também deve pouco- em suas camadas mais baixas e majoritárias, bem entendido- a editoriais ou matérias de jornais e revistas que não lêem; mas deve sim, e cada vez mais, a ação de líderes religiosos plenamente convencidos de que o capitalismo vai de encontro aos planos de Deus para os homens.
Solução? Não vejo. A outra grande corrente religiosa brasileira, os neopentecostais, adotam não raro uma adesão a algo que nem de longe é capitalismo, a doutrina da prosperidade, que condiciona o sucesso à prática da fé, e o insucesso à presença de encostos- há algo que minimize mais o mérito humano do que isso? Resta-nos torcer para que esses bispos e médiuns vermelhos recebam iluminação divina, ou esperar placidamente a queima de burgueses em nome de Deus.
Felipe Svaluto Paúl(prometendo maiores atualizações aqui)
PS: alterações diversas nos links, com acréscimos e exclusão- do site da TFP. Não por discordâncias ideológicas, que sempre as tive, mas por ser agora o site apenas textos dos Arautos sobre a quizila jurídica pelo controle da entidade. Em compensação acrescento o site da CATOLICISMO.
Confesso já uma possível miopia intelectual: não consigo de forma alguma estabelecer ligação íntima entre liberdade e cristianismo, mais novo modismo da neodireita virtual. Não digo que seja impossível a cristão associar-se ao ideário liberal, havendo incompatibilidades doutrinárias entre a Revelação do palestino e a revelação austríaca- faltam-me conhecimentos sobre as escrituras de um e outros para afirmação dessas. Mas me parece claro que ser religiosa a sociedade nada diz sobre o grau de liberdade dessa, como espero ter bem exposto no artigo abaixo. Pelo contrário, nos momentos históricos nos quais as consciências humanas mais fortemente estavam entranhadas pela fé produziram-se os grandes genocídios, perseguições e restrições a liberdades em nome do Pai: as Inquisições Católicas e suas similares protestantes, menos propaladas mas igualmente terríveis- notadamente em Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos; e ainda hoje os resqüícios de restrições a liberdades e isonomia jurídica que persistem nas democracias laicas ocidentais não raro bebem diretamente em "argumentos" religiosos, exemplo máximo na oposição à união civil homossexual. Assim não me parece de forma alguma o liberalismo devedor do cristianismo, menos ainda das religiões- pelo contrário, foi exatamente combatendo a atuação dessas na esfera pública que o liberalismo deu seus primeiros passos. Se o indivíduo quer se afirmar liberal mesmo que negue a dois contribuintes adultos o direito de firmarem contrato marital, problema dele. Mas que os Cordeiros da fé aprendam que a opinião contrária não faz de você um esquerdista deplorável, agente da ONU ou algo assim, pelo contrário: te põe absolutamente condizente com o legítimo ideário liberal.
Apesar dessa minha negativa ao modismo- tão lindamente propalado pelo cada dia mais exótico Mídia Sem Máscara- é inegável que as religiões exercem profunda influência nas mentalidades humanas não apenas no âmbito restrito da ligação com o divino, mas também nas posições dos fiéis perante a sociedade- aí inclusas as posições políticas. Ainda que os sacerdotes, guias e similares palavra alguma dissessem sobre o tema já haveria profunda influência, posto que os Doutores das principais crenças ocidentais deixaram comentários vários sobre a ordem temporal, e as próprias Escrituras tratam de aspectos éticos e morais que podem bem assumir conotação política- legitimar ética e teologicamente a propriedade é legitimar também politicamente sistemas que nela se apoiem. É por tal capacidade das crenças influírem sob a política- amplificada tremendamente quando seus líderes passam a atuar explicitamente como doutrinadores ou cabos eleitorais- que achei necessário passar aos senhores uma quase coincidência editorial a respeito.
REFORMADOR, mensário da Federação Espírita Brasileira. Nada muito interessante, espaço de divulgação da auto-ajuda em que o espiritismo se transformou no Brasil; mas tendo o pai como assinante vez ou outra decido dar uma lida. Folheando a edição de setembro me deparo com título que promete: EMPRESAS, texto de suposta autoria do espírito Joanna de Ângelis, supostamente psicografado pelo suposto médium Divaldo Franco, expoente do espiritismo em âmbito não apenas nacional. Sendo objetivo e cético, texto de autoria de Divaldo Franco.
E o que é o texto? Uma peça semi-socialista, na qual as empresas aparecem como locais pavorosos, máquinas nas quais os seres humanos são apenas engrenagens descartáveis. Sem amor, misericórdia, compaixão. Aquelas que se dedicam a programas sociais não raro exploram muito mais seus trabalhadores do que benefícios que concedem a outros; "é verdade que facultam o progresso na Terra, mas também respondem por muitas misérias e violências morais, econômicas e sociais...". Isso é o texto, um ataque às empresas, ou seja, um ataque ao capitalismo em última instância. Mas não ficamos por aqui, essa é apenas a primeira parte; na segunda, contrapõe-se esse terrível modelo empresarial exatamente ao trabalho para Jesus, para edificação e promoção de seus ensinamentos! Ou seja, deve-se atuar de uma forma quando ator da "empresa de Jesus", forma essa diametralmente oposta àquela exigida pelas empresas do mundo- e, por consegüinte, pelo sistema capitalista. Quem não concordará que há algo errado com essas empresas terrenas?
A coincidência editorial surge agora: CATOLICISMO, mensário outrora ligado à TFP, hoje produzido pelos integrantes desta opostos aos Arautos do Evangelho que hoje dirigem a entidade. Edição de agosto, matéria de capa, denúncia do "miserabilismo", a crença de que ao ser humano basta o mínimo necessário à sobrevivência, ou pouco mais do que isso. Repúdio ao luxo, à riqueza. A matéria traz algo tão óbvio quanto aterrador: esse miserabilismo é difundido em grande parte pela chamada "esquerda católica", teólogos da libertação, CNBB e similares. Frase de Leonardo Boff, o mesmo que clamou por mais aviões atirados contra os EUA: disse ele que "uma sociedade verdadeiramente comunista, no sentido bíblico da palavra", deve almejar não "um socialismo da abundância, mas da pobreza".
Que conclusões podemos tirar dessas matérias? Que a religião tradicional do Brasil, que apesar do declínio acentuado conta ainda como fiéis, ao menos nominais, mais de 70% da população, propaga pela voz de alguns de seus próceres- bem midiáticos, e de alcance até em meios não-católicos- uma doutrina anticapitalista. Que a eles se somam no coro talvez o mais conhecido médium espírita pós-morte de Chico Xavier no Brasil, homem de grande influência sobre os cerca de 7 milhões de kardecistas brasileiros, em sua maioria pessoas de boa renda, escolaridade e não raro formadores de opinião. Considerando-se a influência já citada das religiões sobre um país em que apenas 1% dos habitantes se declaram ateus, tem-se a conclusão final a que chego: boa parte do anticapitalismo crescente em nosso povo não resulta de adesão à doutrina comunista, que a maior parte desconhece; nem se deve a leitura de esquerdistas da Academia, também amplamente desconhecidos; também deve pouco- em suas camadas mais baixas e majoritárias, bem entendido- a editoriais ou matérias de jornais e revistas que não lêem; mas deve sim, e cada vez mais, a ação de líderes religiosos plenamente convencidos de que o capitalismo vai de encontro aos planos de Deus para os homens.
Solução? Não vejo. A outra grande corrente religiosa brasileira, os neopentecostais, adotam não raro uma adesão a algo que nem de longe é capitalismo, a doutrina da prosperidade, que condiciona o sucesso à prática da fé, e o insucesso à presença de encostos- há algo que minimize mais o mérito humano do que isso? Resta-nos torcer para que esses bispos e médiuns vermelhos recebam iluminação divina, ou esperar placidamente a queima de burgueses em nome de Deus.
Felipe Svaluto Paúl(prometendo maiores atualizações aqui)
PS: alterações diversas nos links, com acréscimos e exclusão- do site da TFP. Não por discordâncias ideológicas, que sempre as tive, mas por ser agora o site apenas textos dos Arautos sobre a quizila jurídica pelo controle da entidade. Em compensação acrescento o site da CATOLICISMO.