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domingo, dezembro 10, 2006

O Liberalismo de Joaquim Murtinho*
(* Texto originalmente escrito como trabalho para o curso História do Liberalismo no Brasil, ministrado pelo Professor Fernando Faria na Universidade Federal Fluminense, segundo semestre de 2006)

A proposta desse trabalho é apresentar Joaquim Murtinho como um pensador liberal, o que a princípio pode parecer uma obviedade, ao menos para alguém que já tenha tido o mínimo contato com o pensamento do autor. Mas aqui há dois pontos a considerar: o primeiro deles é que as obviedades, exatamente por essa característica, tendem a não serem explicitadas; parte-se da premissa de que são verdadeiras aos olhos de todos e passa-se adiante – o vício é ainda mais comum no especialista, naquele que conhece ainda mais a obviedade e tende a considerá-la óbvia a um grupo muito grande de pessoas, ou, o que é ainda pior, a não considerar aqueles que desconhecem o fato tão claro como dignos de conhecê-lo. Qual a conseqüência habitual disso? O fato – ou o objeto, ou o enfoque, o que quer que seja óbvio – é ignorado, esquecido. Joaquim Murtinho, um profundo liberal, torna-se apenas mais um político da República Velha, usando aqui esse termo já há um tempo contestado; lança-se então do expediente de análise clássico do período, o submarxismo mais simplório, e Murtinho torna-se o que todo político seria então por excelência: um defensor das oligarquias, quando não ele próprio um oligarca. Que Murtinho era de família notável no Mato Grosso é fato que a biografia não permite desmentir; que era um aliado das oligarquias, entendendo aqui esse comportamento como costuma ser entendido – a adesão a certos interesses de um grupo dominante para além de qualquer perspectiva mais ideológica, flertando o aderente mais ou menos explicitamente com o esbulho da legalidade, com o crime mesmo, na defesa desses interesses – é coisa bem diferente. Numa leitura marxista mais razoável, é natural que Murtinho seja identificado com a classe dominante – não apenas pela sua extração social já referida, mas também pela sua atuação política, mesmo pelas suas idéias, que favoreceriam um liberalismo considerado como a política de acumulação por excelência da oligarquia brasileira do período. Aqui temos dois problemas: o primeiro se refere a leitura que esse marxismo faz do Brasil, da economia brasileira e mesmo do liberalismo, classificando a República Velha como fundamentalmente liberal, o que nos permite uma vasta gama de questionamentos – Como o liberalismo enquanto doutrina se articulou com as experiências históricas concretas, de sociedades políticas? Foram realmente liberais algumas dessas experiências costumeiramente apontadas assim pela historiografia, como é o caso da República Velha? Até onde liberalismo político e econômico são indissociáveis, na doutrina e nas práticas históricas desse ou daquele país? – que merecem uma consideração impossível de ser feita nesse espaço, livros e livros não seriam suficientes, como não têm sido, para esgotar a questão. Já o segundo problema pode sim ser discutido aqui, não apenas discutido – palavra tão cara ao academicismo, exatamente por indicar uma intenção de não afirmar nada, de deixar a questão em aberto, mostrando (no mais das vezes falsa) humildade perante os pares da Academia e aproveitando para procurar destruir o máximo possível de teses e reputações nas entrelinhas – como afirmando o caráter inequivocamente liberal do pensador, no que aparentemente não vou destoar de qualquer um que o tenha lido, comprando briga portanto apenas com aqueles que desconhecem o liberalismo e seus homens, pretendendo uma leitura histórica na qual a hipocrisia é a tônica das ações de todos que não daqueles simpáticos a ideologia desses analistas, eles também, evidentemente, de uma coerência entre pensamento e prática humanamente extraordinária. Enfim, feita a afirmação, não se vai perder de vista a especificidade, o individual, o que seria de um absurdo ainda maior que o habitual em um trabalho que discute doutrina e pensador/político explicitamente individualistas; Murtinho não apenas será identificado como liberal como o liberalismo de Murtinho será analisado como algo produzido por um indivíduo, fugindo a determinismos – sem deixar com isso de inseri-lo nas discussões maiores do liberalismo.

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Joaquim Murtinho era um liberal. Pensou o Brasil sob a luz do liberalismo, ou ao menos sob a luz de um certo liberalismo. Um liberalismo, como não poderia deixar de ser, historicamente determinado; não há em Murtinho – não há nos textos analisados, difícil que haja em outros – discussões sobre a legalização das drogas ou a união civil homossexual, temas presentes no pensamento, nos livros e nas ações de liberais não apenas nesse nosso novo século, como também, pelo menos, na metade final do século que Murtinho viu nascer um pouco antes de seu falecimento. Não podemos adotar o anacronismo e pretender construir, como costumeiramente se faz com pensadores do passado, na Academia politicamente orientada inclusive, um sujeito visionário, um homem de capacidades tais que pairava sobre as convenções de seu tempo, sobre os temas que inquietavam os seus concidadãos e dava importância a aspectos ignorados por uma massa, mesmo de intelectuais, tacanha e incapaz de perceber a pertinência daquilo visto apenas pelo nosso pensador escolhido. Murtinho era – a expressão está batida exatamente por ser pertinente - um “homem de seu tempo”, um liberal de seu tempo.
E como liberal de seu tempo – a metade final do século XIX, a primeira década do século XX – Murtinho fazia suas reflexões orientado pelo que hoje se diz liberalismo clássico, doutrina gestada naquele que é apontado como o século do liberalismo – o século XIX, principalmente sua primeira metade, o que nos remete à discussão já aludida aqui e inviável para o escopo desse trabalho; o que nos interessa é identificar discussões presentes nesse liberalismo e também nas idéias expressas por Murtinho nos textos analisados. Os principais pontos desse liberalismo são os seguintes:
· O mercado como instância por excelência da regulação social, tema central ao liberalismo, cujas origens intelectuais são rastreadas em interessante livro de Pierre Rosanvallon[i] – remetendo a Smith, inequivocamente sobrevivente no liberalismo do século XIX;
· O anti-estatismo, praticamente corolário do ponto anterior, presente em diferentes formas e contextos, todos tendo por norte a supremacia do mercado perante o Estado como ente (espaço?) de regulação social;
· Uma determinada concepção de natureza, profundamente influenciada pelo evolucionismo darwinista, que transfere para o social, o econômico e o histórico, em particular e discutível apropriação, as leis observadas por Darwin no mundo natural;
· A idéia de liberdades e direitos fundamentais, remetendo também a uma idéia de natureza humana, aqui anterior mesmo ao aspecto “mercadista” do liberalismo, tendo suas origens mais profundas pelo menos no liberalismo contratualista lockeano.

São essas as bases fundamentais a partir das quais Murtinho trabalhará, derivando delas conclusões específicas ao caso brasileiro, posto que, longe de ser um ideólogo original – Murtinho não tinha nem mesmo uma formação educacional destinada a isso –, procurou identificar as especificidades brasileiras e trabalhar, na sua atividade política prática, subordinando o ideal a ser alcançado – esse sempre condizente com o liberalismo apontado – a essa lógica evolucionista também citada, tão cara à época e tão passível de ser aplicada a um país de história recente e visto como inequivocamente “em formação”.

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Passa-se agora para o ponto fundamental do texto, no qual serão analisados os textos e discursos de autoria de Murtinho, buscando-se o já apontado: identificar neles o liberalismo clássico, indicar as especificidades do liberalismo de Murtinho e procurar o diálogo que o político realizava entre esses dois campos. Para isso serão selecionados alguns textos do autor presentes no volume analisado para a apresentação oral[ii], em seleção que – novo lugar-comum, também necessário – não poderia deixar de ser precária, excluindo observações que certamente mereceriam consideração em um trabalho mais alentado. Pretende-se, porém, indicar as principais preocupações do autor, evitando-se a repetição que é um risco em pensador/político particularmente obcecado por certos objetos.
O primeiro texto selecionado, seguindo a ordem do volume, é o Relatório Apresentado ao Diretor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, 27-3-1878, de autoria de um Murtinho então professor de Biologia Industrial na citada instituição de ensino. Esse relatório é resultado de uma viagem feita por Murtinho e alunos a São Paulo, viagem que teve por objetivo tomar conhecimento das condições da atividade cafeeira naquele estado, ou província, como então se nomeava. No texto podemos perceber um Murtinho atento, técnico, profundamente descritivo e mesmo incansável, percorrendo no papel o trajeto já percorrido em milhas, nomeando e analisando as condições da produção do café em cada uma das várias fazendas visitadas. O quadro que Murtinho nos apresenta é o de uma atividade pujante, lucrativa, em momento no qual se via entre a manutenção do trabalho escravo e a tentativa de inserção do colono, principalmente estrangeiro, em cenário que via as técnicas tradicionais serem incrementadas cada vez mais pelo maquinário; temos aqui diversos temas que levarão Murtinho a reflexões mais profundas posteriormente, temas fundamentais ao seu pensamento e ação política: a questão do imigrante, a industrialização do Brasil e a produção de café; analisaremos em textos outros esses aspectos com maior densidade. Aqui o que interessa é recuperar a defesa explícita que Murtinho faz do livre-comércio, pedra de toque do liberalismo clássico, porém convenientemente adaptada às circunstâncias históricas nacionais e inserida na lógica evolucionista já aludida. Murtinho nos diz que é contrário à intervenção “constante e direta do Governo Geral na agricultura das províncias”, o que já nos deixa aberta a possibilidade de intervenções ocasionais e/ou indiretas; diz que nesse caso prefere “os sistema americano e inglês” do que o sistema francês, esse último sendo “de proteção a todo transe”. Explicitada essa preferência – ou seja, feita a leitura propriamente ideológica, a defesa daquilo que seria ideal – Murtinho parte para o pragmatismo, para a adequação: diz não existir ainda no Brasil “certo espírito de iniciativa individual” típico das sociedades americana e inglesa, o que demandaria uma intervenção do Estado na agricultura enquanto tal espírito não frutifica. Adequação feita, conclui ainda Murtinho com a observação de uma singularidade tão típica e ainda hoje presente em alguns discursos políticos[iii]: São Paulo, ao contrário do resto do país, não necessitaria desse auxílio governamental exatamente por ser província habitada por população na qual o “espírito de iniciativa individual tem-se levantado ultimamente de um modo esplêndido”. Para além da já citada adequação do discurso, outro ponto merece comentário: bastante comum aos liberais brasileiros era (e é ainda) esse elogio de virtudes supostamente típicas das sociedades anglo-saxãs, virtudes que as fariam tender ao liberalismo, ao capitalismo, à economia de mercado – em análises que misturam Weber (A Ética Protestante...), o pensamento liberal anglo-saxão – tomado por mais coerente, profundo e menos revolucionário e estatista que o francês - e a experiência histórica de Inglaterra e Estados Unidos. Murtinho repetirá isso em outros textos e é interessante o quanto esse ponto é importante para pensadores brasileiros desejosos de inserir o Brasil na modernidade capitalista[iv].
O texto seguinte analisado foi Arrendamento das Estradas de Ferro, de 1896, no qual Murtinho comenta proposta através da qual um engenheiro – Eduardo dos Guimarães Bonjean – pretendia arrendar as estradas de ferro da União. Nesse texto Murtinho explicitará a oposição já comentada aqui entre mercado e Estado: o primeiro como o ente que atende às demandas do público, o segundo como aquele politicamente orientado e economicamente ineficiente. Primeiro nós temos um arrolar de propriedades sob controle do Estado – “banco do Estado, estradas de ferro do Estado, montepio do Estado, caixas econômicas do Estado, fábricas do Estado (...)” – e a conclusão inevitável: “somos forçados a reconhecer que a tendência é para uma República Socialista, república na forma, na aparência, despotismo no fundo”. Aqui é interessante notar a semelhança entre o dito por Murtinho e a tese fundamental do clássico panfleto do neoliberal Friederich Hayek, O Caminho da Servidão: quanto maior a presença do Estado na economia mais próximos estaremos do socialismo. Aqui Murtinho e Hayek entendem o socialismo não exatamente como marxismo, mas sim como um sistema fundamentalmente oposto ao capitalismo entendido como economia de mercado. A semelhança entre as duas coisas, porém, é tal que os socialistas marxistas se notabilizaram e se notabilizam exatamente por defenderem o intervencionismo econômico do Estado, e as experiências socialistas ditas “reais” foram Estados economicamente planificados, exatamente o destino que Hayek temia para a Inglaterra do pós-segunda guerra – e Murtinho temia para o Brasil República. Mas esse é tema para outro trabalho; aqui nos interessa essa semelhança entre o nosso Murtinho de meados de fins do século XIX e o Hayek de meio século seguinte.
Nesse mesmo texto Murtinho irá ainda justificar a supremacia do mercado sobre o Estado através de argumentos tipicamente liberais, destacando-se – por ser menos conhecida do público – a idéia de que só o mercado tem condições de realizar os cálculos econômicos necessários para atender as diferentes demandas dos diferentes agentes do mercado – qualquer tentativa de centralizar e burocratizar esse processo através do Estado seria sempre inferior à dinâmica observada na relação entre consumidores e fornecedores, estes últimos orientados por um interesse individual – ver Adam Smith e a discussão de Albert Hirschman[v] sobre os interesses individuais e o bem coletivo, tema caríssimo ao liberalismo. Murtinho lembra ainda outro aspecto fundamental da ineficiência estatal, a orientação política que a ação do Estado tende a assumir: “Incapaz talvez por solicitações políticas de escolher os melhores traçados”, fala Murtinho sobre a ação do governo na construção das estradas de ferro, em claro exemplo do descompasso entra a lógica econômica do capitalista e a lógica política do Estado. Defenderá então Murtinho o arrendamento, sob a lógica de que as estradas de ferro estarão em melhores condições nas mãos daqueles que objetivam nelas o lucro individual – e tudo farão para obtê-lo – do que nas mãos de um Estado sem interesse imediato nelas que não o das suas clientelas políticas – aqui Murtinho se coloca claramente em oposição à oligarquia do café, remetendo a comentário já feito aqui, na medida de que foi precisamente essa a oligarquia a orientar os traçados das estradas segundo seus interesses privados.
Seguimos para a Introdução ao relatório do Ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas, 1897, relatório de Ministro que era exatamente o nosso Joaquim Murtinho. Nele o primeiro ponto que merece nossa consideração é a distinção feita entre indústrias “naturais” e “artificiais”: Murtinho entende aqui por indústrias naturais aquelas surgidas em atenção a demandas do mercado, ou seja, aquelas que surgem “naturalmente” e atendem a interesses sociais reais e verificáveis exatamente pelo progresso que essas indústrias fazem no mercado; por artificiais temos indústrias que não se sustentam, que atendem menos a uma demanda específica e mais a interesses políticos – hoje se diria “estratégicos” – de um Estado que traveste de nacionalismo a defesa de interesses de determinados segmentos capitalistas, mantendo empresas vivas apenas através do protecionismo, expediente fortemente rejeitado por Murtinho como um imposto absurdo decorrente de política econômica estúpida, nos faz importar “caro aquilo que podíamos produzir barato e produzirmos caro aquilo que podíamos importar barato”. Para além dessa leitura profundamente econômica, porém, há uma visão de mundo, talvez um certo ‘agrarismo’: “A supremacia do industrialismo poderia trazer-nos grandes males sociais, deixando-nos talvez a forma, mas fazendo-nos perder com certeza a substância da nossa liberdade”. Aqui Murtinho se refere apenas aos danos à liberdade decorrentes de um Estado orientado por centros interesses econômicos ou temos também elemento – em nada estranho ao liberalismo, presente por exemplo no pensamento de Thomas Jefferson, founding father da experiência nacional americana tão elogiada por Murtinho – constituído pela concepção de uma sociedade de proprietários agrícolas como a ideal para o florescimento da liberdade, um temor da concentração de capital e propriedade decorrentes das experiências industrialistas internacionais? É lembrar que o liberalismo sempre associou propriedade e liberdade e essa hipótese faz sentido no mínimo razoável. Ainda nesse aspecto Murtinho irá rejeitar os Estados Unidos como modelo – aparentemente havia defesa do protecionismo no Brasil baseada na experiência de industrialização americana –, primeiro por não considerar o protecionismo como fundamental para a industrialização do país, segundo por – retomando aqui ponto já comentado, mas acho que no caso convém frisar – por que nós brasileiros “não temos as aptidões superiores de sua raça”. Murtinho, americanófilo e em alguma medida racista, como tantos liberais foram e alguns talvez ainda sejam.
Outro aspecto interessante desse texto é a questão da imigração, já aludida aqui, que ocupa trecho razoável do documento. Murtinho irá advogar uma imigração “espontânea”, ou seja, irá rejeitar uma imigração promovida pelo Estado. Essa imigração é danosa do ponto de vista econômico – o imigrante é atraído com promessas várias, é vítima da propaganda, não encontra aqui o que esperava e volta para o país de origem, ou remete para ele tudo o que aqui consegue obter -, do ponto de vista ideológico – imigrantes em demasia estavam trazendo para cá suas idéias socialistas – mas principalmente do ponto de vista cultural, da construção da nacionalidade: novamente não somos como os americanos, “não temos o poder assimilador enérgico e intenso desse grande povo”. Ou seja: não conseguiremos assimilar os nossos imigrantes, que “permaneciam por muito tempo como corpos estranhos ao nosso organismo social”, constituindo uma ameaça a uma nacionalidade que, antes de absorver, acabaria por ser absorvida. Interessante aqui a semelhança entre o pensamento de Joaquim Murtinho e o do crítico literário Sílvio Romero, seu contemporâneo, sobre o mesmo tema[vi].
Mais um ponto que merece destaque nesse relatório é a questão do funcionalismo público: Murtinho novamente identifica nessa questão o germe do socialismo; estamos repletos de empresas públicas – Correios, Telégrafos, estradas de ferro – que não são lucrativas, antes, têm seus serviços subsidiados pelo Estado. Tal situação é apontada por Murtinho como bastante exótica: ninguém aceitaria que um determinado produto fosse pago a um comerciante abaixo do seu valor, mas aceita-se sem problemas que isso seja feito em relação a tais empresas, cujos serviços são prestados por custos inferiores aos de produção, estando elas – e por conseguinte o Estado, e o contribuinte – constantemente em déficit, algo animado por lógica socialista. Mas os problemas financeiros das empresas têm ainda outra causa, e ela reside em seus próprios funcionários. Há no país uma “tendência para o funcionalismo”, que “tem acarretado entre nós um desenvolvimento burocrático extraordinário, um dos nossos grandes males”. O serviço público é uma verdadeira droga, não no sentido de sua precariedade – embora nesse sentido também -, mas no sentido de um entorpecente, de teor viciante mesmo: “dir-se-ia que há ‘buromaníacos’ como há ‘morfimaníacos’, uns não compreendem a vida sem o emprego público, outros sem a morfina”. Não creio que algum cidadão brasileiro – ou pelo menos carioca, ou fluminense – não tenha o que dizer sobre a atualidade dessa tendência comportamental observada por Murtinho. Temos então um verdadeiro deslocamento da capacidade de mão-de-obra do país, desviada do setor produtivo para o burocrático, subvertendo o que deveria ser a lógica da burocracia: “em vez de uma classe de funcionários trabalhando para a Nação, teremos a Nação trabalhando para a classe dos funcionários”.
Último ponto a considerarmos no texto – lembrando aqui que há pontos e pontos a serem considerados, a seleção se deve a tentativa de produzir um trabalho que seja legível por pessoas que querem conhecer Murtinho, e não se especializarem nele – é uma afirmação um tanto perdida de Murtinho, em momento no qual já se encaminha para a conclusão, mas que acho conveniente lembrar aqui pela semelhança que tem com o já aludido texto de Hayek e com a concepção liberal clássica sobre a indissociabilidade entre liberalismo econômico e político. Diz Murtinho que “Todas as liberdades se ligam umas às outras; destruindo uma delas, comprometemos a existência das outras”; não é outra a concepção do panfleto de Hayek nem a de qualquer um que se diga liberal.
O penúltimo texto a ser analisado é a Introdução ao Relatório do Ministro da Fazenda, 1899, sendo aqui novamente Murtinho o referido ministro. Nesse texto há aspectos já comentados, e seguindo a proposta econômica em oposição à verborragia inócua tão comum a alguns trabalhos pretendo comentar apenas o que me parece o aspecto principal desse texto, já abordado de forma lateral no anterior, quando preferi não comentá-lo exatamente por achar as idéias de Murtinho sobre o tema melhor expressas aqui; falo da agricultura brasileira e especificamente da crise do café.
A interpretação de Murtinho sobre como proceder diante da agricultura já foi explicitada no primeiro texto aqui apresentado: o ideal seria uma agricultura livre do Estado, como de resto deveriam ser também as outras atividades econômicas; mas alguma intervenção seria necessária exatamente pela inexistência, entre nosso povo, dos valores que permitiriam o frutificar de uma agricultura independente. Interessante é que, como Ministro, posto diante de uma crise da produção cafeeira, Murtinho irá rejeitar os expedientes intervencionistas apresentados a ele como soluções ou ao menos paliativos para o problema; isso porque Murtinho considera a crise cafeeira como produto de vários fatores – a desvalorização do papel-moeda, levada adiante por um Estado irresponsavelmente emissor, a causa mais profunda; a atração de mão-de-obra e capitais exercida pelas indústrias protegidas pelo Estado, causa também importante – mas tendo como elemento causador mais imediato algo que pode ocorrer vez ou outra em uma economia de mercado, e que só pelo mercado pode ser sanado: um descompasso entre a produção e a demanda. Murtinho considera que o café se tornou um fetiche tal que começou a atrair praticamente todos os esforços, e foi sendo plantado em todos os lugares, mesmo em terras e climas desfavoráveis, como se a demanda por ele fosse infinita, profundamente elástica. Essa demanda não se mostrou assim, e agora até que os agricultores percebessem o problema e migrassem para outros plantios – paralelamente desenvolvendo propaganda do café nos mercados do exterior, projeto de longo prazo - os preços seriam baixos e os estoques encalhariam; qualquer tentativa de resolver o problema através do Estado – principalmente a compra e posterior queima do café por parte do Estado – só alimentaria a situação artificial, adiando a solução do problema. Ao Estado só caberia uma luta: buscar reduzir as taxas de entrada para o café em alguns países, no que obviamente teria que repensar também as nossas taxas em relação aos produtos estrangeiros – uma relação hoje normalmente vista como de troca e que Murtinho indica como decorrente de uma percepção por parte do Estado do quão danosos são os protecionismos.
Como último texto escolhi um já tardio, de 1905, o Discurso Sobre as Candidaturas de Afonso Pena e Nilo Peçanha a Presidência e Vice-Presidência da República, discurso feito por Joaquim Murtinho em banquete no qual a referida chapa foi lançada. Nesse texto Murtinho expõe os pontos do programa da chapa, declarando-a presidencialista, federalista, laica e livre-cambista. Três desses pontos merecem uma consideração mais detalhada aqui, ainda que breve.
Murtinho declara a coligação presidencialista; isso pode parecer óbvio, fomos presidencialistas durante toda a nossa história republicana, já éramos assim há alguns anos em 1905; sim, é verdade – mas é igualmente verdade que a defesa do parlamentarismo pairava, como ainda paira, constantemente sobre o cenário político nacional. Temos uma crise, ou mesmo nos aproximamos de uma, e surge alguém defendendo a idéia; há algum tempo a coisa não é explicitada por um notável, certamente como decorrência da crise moral profunda do nosso parlamento. Mas é esperar e ela certamente aparecerá, como aparecia ali em 1905; Murtinho sente então a necessidade de contestá-la, e é interessante notarmos a crítica que ele faz do parlamento monárquico brasileiro, exemplo mesmo de que o sistema nada tem de excepcionalmente digno: “os partidos tinham idéias tão mal definidas que o governo de um deles executava muitas vezes as idéias do outro”; é interessante notar que essa observação de Murtinho tornou-se absolutamente consagrada na historiografia sobre o tema, mesmo quem procura apontar diferenças de posicionamento maiores entre os partidos acaba se vendo diante da concretude da situação descrita por Murtinho, na qual um partido leva adiante o programa daquele que derrotou – o livro Tempo Saquarema, de Ilmar Rohloff de Mattos, aponta exatamente nessa direção[vii].
O aspecto do federalismo guarda também uma singularidade, novamente um momento no qual Murtinho percebe um problema que seria discutido profundamente pela historiografia posteriormente – sem ser nenhum visionário por isso, não vou trair minhas considerações iniciais; o problema foi visto por vários outros republicanos históricos, como Rui Barbosa. Ao defender o federalismo Murtinho diz: “Não nego, senhores, que na vida íntima dos Estados se tenham dado crises de difícil solução na atualidade; elas, porém, serão resolvidas cada vez com mais facilidade(...) e as chamadas oligarquias estaduais, isto é, o governo de grupos estranhos à vontade e à ação popular não são obra da Federação; elas poderiam ter imitação no governo da União, e elas floresceram exuberantemente em plena centralização democrática”. Ou seja, Murtinho percebe as oligarquias como um problema, mas não as considera como intrínsecas ao federalismo, antes podendo surgir em qualquer governo, como de fato surgiram e floresceram durante o regime monárquico. Elas fenecerão “à medida que a educação política for procurando um nível mais elevado” – educação política como fundamental para a república, outro elemento em comum com Jefferson e os fundadores da república norte-americana como um todo; novamente também a perspectiva evolucionista de Murtinho.
Também evolucionista é a leitura que Murtinho faz do livre-comércio: é ideal a ser alcançado, mas não algo que possa ser imediatamente implantado de forma absoluta: “Assim, senhores, é o livre câmbio, ele representa uma aspiração universal, porque traria grande soma de bem-estar a toda a humanidade; enquanto, porém, não houver o consenso unânime das nações, ela não poderá se realizar e somos por isso forçados a preparar e organizar a defesa da nossa indústria contra os ataques protecionistas dos outros povos”. Ou seja, novamente sem ser explícito quanto aos meios – como no caso da necessidade do Estado fomentar a agricultura -, Murtinho deixa claro que enquanto a defesa do livre-comércio não for universal o Brasil precisará se valer do Estado para proteger as nossas indústrias como outros países protegem as deles. O perigo óbvio desse raciocínio – sua circularidade – não é tocado por Murtinho, como não é tocado por aqueles que se valem dele ainda hoje.
***
Considero concluído esse trabalho, que é nada além de uma apresentação ao pensamento de autor normalmente ignorado. Vários pontos dos textos comentados foram ignorados, textos inteiros do volume foram ignorados, e mesmo nesse volume o que há é seleta de uma obra que, se não extensa – nada ali é especificamente teórico, são discursos, cartas, introduções a relatórios, Murtinho não era especificamente um “intelectual” – certamente contém mais do que o apresentado no livro. Produzir um livro ou um trabalho, como viver, é escolher; considero que fiz escolhas razoáveis aqui e penso que aquele que ler esse texto terá uma visão bastante razoável do que pensava o homem público Joaquim Duarte Murtinho.
Felipe Svaluto Paúl
Novembro/2006
[i] ROSANVALLON, Pierre. O Liberalismo Econômico. Bauru: EDUSC, 2002.
[ii] MURTINHO, Joaquim. Idéias Econômicas de Joaquim Murtinho. Introdução, notas bibliográficas, cronologia e textos selecionados por Nicia Villela Luz. Brasília/Rio de Janeiro: Senado Federal/Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980.
[iii] Refiro-me aqui a discursos vários em torno de uma supremacia paulista sobre o restante da nação, que não raro desembocam em defesas de um separatismo que chega a reivindicar, sem muito rigor histórico, a Revolução de 32. Ausentes por motivos óbvios da política nacional, de seus protagonistas pessoais e partidários, tais discursos são facilmente encontrados, em número razoável, em fóruns de discussão política na internet.Recentíssima eleição presidencial – na qual o mapa brasileiro foi mais de uma vez divido por voto em análises de comentaristas políticos, criando o fenômeno dos “dois Brasis” eleitorais – motivou várias manifestações nesse sentido. Um estudo interessante – mesmo uma pesquisa qualitativa simples já daria o que pensar – seria procurarmos identificar o quanto os paulistas hoje têm ainda desse discurso que os tornaria ímpares, mesmo cultural e ideologicamente, do resto do país.
[iv] Em Protestantismo, Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil (Brasília: Editora da UNB) David Gueiros Vieira mostra o quanto diversos intelectuais brasileiros defendiam uma imigração protestante e anglo-saxã como solução para inserir o Brasil na modernidade capitalista, da qual foi afastado historicamente por um catolicismo avesso ao lucro e às liberdades naturais.
[v] HIRSCHMAN, Albert O. As Paixões e os Interesses, Rio de Janeiro: Record, 2002.
[vi] SCHNEIDER, Alberto Luiz. Sílvio Romero: o hermeneuta do Brasil. São Paulo: Annablume, 2005.
[vii] MATTOS, Ilmar Rohloff. Tempo Saquarema: a formação do Estado Imperial. São Paulo: Hucitec, 2004.

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