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terça-feira, novembro 20, 2007

DOIS TEXTOS PUBLICADOS NA REVISTA "A RODA"

(Reproduzo abaixo dois textos meus originalmente publicados no número 5 da revista "A Roda" - publicação dos alunos do curso de graduação em História da UFF)

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O QUE O LIBERALISMO NÃO É – COMENTÁRIOS A PARTIR DE FALA DO PROFESSOR CIRO CARDOSO

Na última edição dessa revista o professor Ciro Flammarion Cardoso foi perguntado, em entrevista, sobre o que de fato significariam os termos direita e esquerda. A pergunta não poderia ter sido mais abrangente: não se referia ao que seriam direita e esquerda hoje, esquerda e direita no Brasil, esquerda e direita quando da Revolução Francesa. Não; a pergunta pretendia uma resposta sobre os significados mesmos dessa divisão clássica do espectro político, sem atentar para uma especificidade temporal ou espacial. Já seria difícil responder pergunta dessas se ela fosse limitada por ao menos um dos marcos que apontei; aí ao menos seria possível refletirmos a partir de afirmações de determinados agentes históricos, sujeitos que identificavam a si mesmos como seguidores dessa ou daquela matiz esquerdista ou direitista – mas ainda assim a resposta seria no máximo parcial, capenga, mesmo vinda de alguém com a erudição notável do professor Ciro. Como foi colocada, a pergunta torna a resposta quase impossível, ainda que pergunta a resposta sejam sim mais do que pertinentes, ao menos pelo tanto de vezes em que nos pegamos pensando a respeito - e mais ainda pela importância fundamental que a divisão apresentada ainda assume nas práticas e discursos políticos, no curso de História, na UFF, no Brasil e em todo o mundo, a despeito de uma aparente diminuição nos debates propriamente ideológicos, em prol de consensos em torno de um suposto “centro” político pragmático e tecnicista. E foi baseado nesse entendimento que também é meu – a importância atual dessa discussão – que entrevistadores e entrevistado emitiram respectivamente a pergunta clássica e uma resposta possível. Não pretendo aqui entrar propriamente na discussão, embora lateralmente ela vá sim aparecer; meu interesse é partir de algumas afirmações do professor para dizer o que uma determinada doutrina política – o liberalismo – não é. Ciro falou como um marxista renomado; eu falarei como um liberal em formação. Peço desde já perdão ao professor – e aos luminares da filosofia política, liberais inclusive – por qualquer falha decorrente de minhas próprias limitações e lacunas. Faço um esforço que é político mais do que científico; seria preferível que pessoa mais qualificada o fizesse – ocupo esse espaço apenas porque esse hipotético sujeito liberal ainda não se mostrou disposto a escrever para nossa revista.

Primeira questão, a explicação mesma do meu texto: o liberalismo é de direita ou de esquerda? Ele é de direita, de esquerda e também muito pelo contrário. É interessante como o próprio professor Ciro parece entender essa peculiaridade do liberalismo quando diz “(...) O típico da direita é exatamente o contrário, por isso seus membros são chamados de conservadores”. O professor não inclui os liberais entre os direitistas, ao menos não aí – será apenas mais adiante que equiparará o neoconservadorismo e o neoliberalismo como expressões ideológicas de uma nova direita. A posição do professor se coaduna com a leitura marxista: filho mais velho da modernidade, o liberalismo seria uma força progressista ou reacionária de acordo com as estruturas que combate, de acordo com a classe a qual se opõe – o liberalismo teria sido progressista ao combater os privilégios feudais, o Antigo Regime, o Estado não-laico, a servidão; seria reacionário ao sustentar a exploração do homem pelo homem, rejeitar ações governamentais tidas como socializantes, insistir em uma meritocracia regulada pelo mercado etc. Não é preciso dizer o quanto tais concepções podem variar em experiências históricas concretas – no Brasil Império poderiam ser identificados dois liberalismos, um reacionário e direitista e outro progressista e esquerdista; um mesmo liberal no Brasil contemporâneo poderia aparecer como esquerdista ao defender a legalização das drogas e como direitista ao discursar em prol da privatização dessa ou daquela estatal... Os exemplos não faltam à mente do estudante de História experimentado. Mesmo os liberais assumem diferentes posições quanto à questão: há os que se consideram direitistas, há os que se dizem esquerdistas – poucos hoje, principalmente no Brasil – e mesmo aqueles que, seguindo Hayek, pretendem uma transcendência da doutrina sobre essa questão, preferindo opor o liberalismo a duas formas de estatismo, mesmo a duas formas de socialismo para alguns – a forma conservadora e a forma comunista. O terreno é árido e não entrarei nele para além desse mapeamento muito sucinto. O que me importa aqui – e o que motivou esse meu texto – é demonstrar como o liberalismo se relaciona com determinadas características que o professor Ciro atribuiu à direita – considerando que é nesse campo que os marxistas e a esquerda em geral costumam situar o liberalismo e os liberais contemporâneos.

A argumentação do professor se centra em dois pontos, em duas visões que ele atribui à direita: ela teria uma certa visão de natureza humana e – aparentemente como derivado disso – uma certa visão de sociedade. O homem naturalmente tenderia a buscar “propriedade privada, status e poder” e tenderia também a naturalizar uma lógica social que supostamente se fundamentasse sobre essas características. Essa conformação social só poderia ser melhorada, jamais revolucionada a ponto de perder essas características em prol de um igualitarismo. Aqui é preciso que nos perguntemos: o liberalismo se encaixa nessa definição? Sendo o liberalismo tantas coisas, podemos dizer também que se encaixa e não se encaixa ao mesmo tempo. Há sim liberais que continuam partindo da premissa da existência de uma natureza humana, agora assentados menos numa suposta ordem divina ou em direitos naturais e mais em descobertas da biologia, da psicologia evolutiva, das ciências da cognição etc. Mas é preciso atentar que isso justifica liberalismos os mais diferentes – desde aquele que se baseará nisso para naturalizar, sim, “a competição” até um que identificará uma natureza humana essencialmente negativa e mesmo predatória, o que justificaria um Estado o mais limitado possível – no qual os detentores do poder, sempre tendendo à corrupção e ao arbítrio, pudessem prejudicar o mínimo possível os outros seres humanos. Não são todos os liberais – nem uma maioria deles – que identificarão nessas características um corolário que justifique a nossa atual sociedade. Aliás, o que os liberais mais derivam dessas visões sobre a natureza humana é exatamente que a atual sociedade é antinatural, posto que estatista – temos aí um liberalismo profundamente revolucionário, cuja expressão mais radical reside no libertarianismo anarco-capitalista americano, que proporá a simples abolição completa do Estado, a ser substituído pelo mercado como ente fundamental – em alguns casos único – da regulação do social. Apesar de não chegar a esse radicalismo, acho possível sim dizer que o que convencionamos chamar de neoliberalismo se aproxima dessa visão – há algo mais revolucionário na França do que pretender abolir uma verdadeira instituição nacional, a jornada de trabalho das 35 horas semanais? Há algo mais revolucionário na Europa do que pretender demolir – e não apenas reformar, como quis e quer a Terceira Via – um “estado de bem-estar social” quase cinquentão? Para além disso, há sim liberais que não partem em absoluto da existência de uma natureza humana – e nem por isso deixam de atentar para os diferentes problemas que mudanças bruscas (revolucionárias principalmente) trouxeram e ainda trazem para o social. Criticar o Terror da Revolução Francesa como algo inerente a um processo revolucionário que combinou uma massa faminta e utopistas de gabinete é mais uma lição da História que da Biologia. Aí a esquerda é que parece ainda trazer com ela uma natureza humana rousseauniana: basta chamar os bons selvagens à luta e eles farão o que deve ser feito, destruindo tudo e construindo sobre isso o novo. As pilhas de cadáveres dessa visão só começaram a ser construídas pelas guilhotinas: os países comunistas do século XX seriam pródigos na produção dessas “vítimas da História”.

Relativizadas as posições do liberalismo sobre a natureza humana e os corolários possíveis delas, apresentada a saudável – literalmente falando – resistência de tantos liberais a engenharias sociais conduzidas por intelectuais iluminados, cabe ainda um comentário rápido sobre afirmação do professor Ciro sobre uma certa direita contemporânea: diz o professor que “(...) O que há é um avanço muito grande da direita, que já não tem medo de dizer, por exemplo, que o mercado é muito mais importante que a democracia(...)”. A afirmação merece ser relativizada, ao menos pelo peso negativo que a palavra “mercado” tem nos círculos dos leitores dessa nossa revista. O que os liberais dizem é que a democracia não pode ser confundida com democratismo; não é tudo que se torna moralmente legítimo apenas por contar com a aprovação do grosso da população. Há coisas que não devem nem podem ser sequer submetidas ao escrutínio das massas; não há sentido em um referendo sobre exterminar ou não todos os judeus – ou negros, ou homossexuais, ou marxistas. Menos sentido ainda há quando uma certa elite política se arvora no direito – sustentada por um autoritarismo – de realizar extermínio desses grupos em nome de massas que supostamente clamariam pela limpeza. Da mesma forma, direitos como o de livre expressão de idéias, de liberdade religiosa, de liberdade de associação política, de trânsito etc. são direitos inalienáveis e morais em si mesmos; evidentemente, um governo pode restringi-los – ou mesmo cerceá-los totalmente – e fazer isso em nome das massas, e em alguns momentos pode até mesmo contar de fato com a aprovação dessas massas. Mas não será isso que tirará o caráter criminoso da coisa, por mais que a legislação tenha tornado a prática correta e por mais socialmente aceitável que ela seja. E é aí que entra o mercado: em diferentes graus, os liberais preferem – baseados em argumentos históricos, econômicos, sociológicos – o mercado ao Estado como garantidor dessas liberdades fundamentais. Há um temor historicamente justificado de que as massas são levadas – muitas vezes exatamente em nome da democracia – a sustentarem toda sorte de ataques a esses direitos. Ditaduras várias – de direita e de esquerda – já nos mostraram o quanto as massas podem apoiar enfaticamente toda sorte de restrições às liberdades e mesmo coisas como tortura e assassinatos sistemáticos de opositores políticos. O liberalismo – a doutrina que garante a todo opositor o direito de expressar-se – tem razões mais do que justificadas para temer a democracia, portanto; o que não significa que pretende vê-la subordinada ao mercado. A maioria dos liberais – eu inclusive – rejeitam o mercadismo máximo do anarco-capitalismo e pretendem ver na prática o que em tese já é garantido pela maioria dos Estados ocidentais, ou seja, a proteção desses direitos fundamentais exatamente dentro dos marcos do Estado e da democracia.

Quando pretendemos discutir coisas desse porte em tão poucos parágrafos é inevitável que tenhamos lacunas várias; tenho certeza que o professor Ciro se deparou com o mesmo problema na entrevista que concedeu, em grau até maior. Estou à disposição para esclarecer a quem quer que seja – na medida de minhas possibilidades – um pouco mais sobre o que coloquei acima. O liberalismo é um projeto civilizacional que, longe de superado, é atualíssimo e viu o sangrento século XX confirmar tantas de suas idéias políticas e econômicas. O século XXI será o século do liberalismo ou será mais um século de barbárie. Conto com todos vocês para a construção diária da sociedade aberta.

Felipe Svaluto Paúl

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UM PROFESSOR DA UFF PODE ENTRAR EM GREVE?

Uma introdução se faz necessária antes de considerarmos a questão da greve em si: é preciso identificarmos no que um funcionário público difere de um funcionário de empresa privada. A diferença fundamental é a seguinte: um funcionário de empresa privada opera sujeito a determinadas circunstâncias de mercado que não afetam em absoluto o servidor público – enquanto servidor, obviamente não enquanto consumidor. Que isso significa? Significa que os vencimentos de um funcionário de empresa privada serão definidos de acordo com uma série de variáveis inseridas na lógica de mercado: ele ganhará um salário tal que ao mesmo tempo permita determinado lucro ao patrão que o emprega e estimule esse funcionário a permanecer naquele emprego e não optar por outro; essa possibilidade de optar por outro emprego está mais ou menos aberta de acordo não apenas com as habilidades e formação educacional do empregado, mas também de acordo com a situação presente do mercado de trabalho, que habilidade é valorada positivamente, quantos indivíduos a possuem, quantos estão interessados naquele emprego possível; o patrão desse empregado terá mais ou menos interesse em mantê-lo nos quadros da empresa também segundo a situação presente do mercado: o quanto aquele funcionário é um diferencial na composição do valor de certo produto ou serviço, o quão ruim seria perdê-lo para concorrente; ainda será preciso considerar – e isso deve ser considerado por patrão e empregado – a demanda atual e as perspectivas de demanda futura para aquele produto ou serviço, o quanto a empresa lucra e pode vir a lucrar, pois uma demanda maior ou menor pode permitir ou dificultar uma maior valoração do trabalho desse nosso empregado. Essas e várias outras variáveis compõem a complexa e mutável equação que define o lugar ocupado por cada um no mercado de trabalho – e o grau de subjetivismo e a importância de fatores como sorte e rede pessoal de relacionamentos dificultam qualquer matematização mais clara dessa equação. Em suma: mesmo em uma sociedade com o mercado de trabalho ainda bastante regulado pelo Estado – como é o caso da sociedade brasileira – a situação do funcionário de uma empresa privada é sempre marcada pela dúvida, pela inconstância, pela possibilidade de se ver desempregado devido a uma mudança em uma dessas tantas variáveis arroladas, muitas das quais escapam em absoluto ao controle dele. Em oposição a isso, o emprego público se caracteriza pela estabilidade. Não é o mercado o definidor da importância daquele serviço oferecido: é a política. Instâncias políticas definiram que tal ou qual serviço é importante por essa ou aquela razão; o Estado considera – como somos uma democracia essa consideração em tese passou e passa o tempo todo pelo crivo das urnas – que é importante que existam universidades estatais, que atenderão a tal público e de tal forma. Para essa universidade serão contratados funcionários cujos vencimentos e condições de trabalho serão também definidos pela política: não serão os beneficiários daquele serviço que dirão através da compra o quanto valoram o produto oferecido, mas sim instâncias políticas, que valorarão menos ou mais esse serviço de acordo com pressões também políticas, exercidas por grupos organizados ou agentes individuais. O resultado disso é simples: enquanto o salário de um padeiro é definido em parte pelas pessoas que compram pão e por aquelas que gostariam de comprar, essa consideração inexiste na lógica do serviço público; o salário de um professor da UFF apenas muito lateralmente – e idealmente – está referido ao valor que a sociedade confere a esse professor, o que seria checado apenas através do processo eleitoral e de mobilizações em prol da redução ou do acréscimo desse salário. O professor da UFF compra pão e influi no salário do nosso hipotético padeiro; mas o padeiro não estudou na UFF, não tem filho que estuda e não considera em absoluto uma pesquisa histórica qualquer como importante para a vida dele. Isso significa mais do que o pagamento por um serviço que não se utiliza e não se considera como essencial ou mesmo importante; significa que o salário de um professor da UFF está relacionado mais à importância que esse professor se auto-atribui e ao quanto estará disposto a fazer essa importância valer politicamente (e o quanto políticos e burocratas considerarão que vale a pena politicamente atendê-lo) do que referido a um mecanismo de valoração dinâmico e cotidiano que funciona a partir dos usuários atuais ou em potencial do serviço oferecido. Podemos dizer o mesmo para as condições sob as quais trabalha, das horas trabalhadas ao material disponibilizado para ele – passando pelas possibilidades de sofrer qualquer coisa em decorrência de um trabalho valorado negativamente.

É essa condição e seus corolários que tornam absurda qualquer greve de professores na UFF ou qualquer outra universidade estatal brasileira. Esses professores optaram claramente por um regime de trabalho regulado por instâncias outras que não aquela cuja lógica - fundamentalmente, como já dito; o mercado brasileiro é muito regulado politicamente ainda - rege a esmagadora maioria das relações trabalhistas no país. Existem professores com formação equivalente submetidos a esse outro regulador; mudar de regulador é possibilidade aberta a todos os docentes uffianos. Se não mudam é porque identificam melhores condições na universidade estatal, condições que vão desde a possibilidade de pesquisarem mais intensamente – pesquisas também submetidas a uma regulação política, aprovadas por instâncias político-acadêmicas sem qualquer questionamento sério sobre o interesse real do nosso hipotético padeiro nelas – até (e como há uffianos gozando felizes dessa condição!) a impossibilidade quase absoluta de serem demitidos, por mais porcos que venham a ser os serviços oferecidos. Todo e qualquer aumento de salário – que não uma mera reposição de perdas decorrentes de inflação – será apenas uma negociação entre dois agentes políticos, um dos quais é exatamente aquele que pretende ver seu trabalho melhor valorado – e ambos discutem essa valoração com dinheiro alheio, o do contribuinte. O povo cuja opinião se ignora – os nossos compradores de pãezinhos – cunhou há sabe-se lá quanto tempo o adágio célebre: a porta é a serventia da casa. Quem não estiver satisfeito com as “terríveis” condições atuais de trabalho tem o direito de tentar a sorte sob o regulador empregatício mais generalizado. Quem se habilita?

Felipe Svaluto Paúl


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