terça-feira, novembro 06, 2012
QUE SUBÚRBIO É ESSE? (UMA HOMENAGEM AO CACHAMBI)
Eu moro no subúrbio carioca há 26
anos. Eu não moro no subúrbio carioca há 26 anos. Eu tenho 26 anos.
Cachambi. Fustigados mais uma vez e
sem misericórdia pela mesma imprensa que encomenda e divulga diligentemente
suas pesquisas a cada nova eleição, nossos distintos institutos de opinião bem
poderiam desistir das justificativas e enveredar por searas mais prosaicas –
por exemplo, perguntar aos ilustres moradores da capital nacional da rede globo
quantos já ouviram falar em (“no” talvez fosse dica demais) Cachambi.Chuto, no
bom espírito dos institutos, afirmando categoricamente que teríamos algo entre
10% de “um bairro aí”, 40% “não sabe”, 40% “uma água mineral” e 10% preferindo
não opinar (100% desses morando orgulhosamente no Cachambi). Incluindo singela
margem de erro de 87% e detalhando mais o inquérito, teríamos cerca de uns 100
mil cariocas identificando a coisa como bairro – sim, é isso, um bairro - e talvez
30 mil deles estabelecendo corretamente o lugar como parte da Zona Norte da
cidade.
Boboquices à parte, o parágrafo
anterior tem muito de realidade. A confusão com a água (para quem não
identificou, falamos da Caxambu, referência à cidade mineira) já foi cometida
por pelo menos três interlocutores nos meus aludidos 26 anos, em todos os casos
sem qualquer sinal de ironia minimamente perceptível. O Catumbi – sim, outro
bairro – também já foi mencionado como alternativa correta à minha
aparentemente crônica dificuldade de me fazer entender pelo ouvinte interessado
(?). Houve momentos em que até eu, talvez em wishful thinking comum aos 100%
que prefeririam não responder, me perguntei, em meio às interrogações do
conhecido/colega/amigo, se de fato existiriam aquelas ruas da minha infância –
ou se Cachambi era apenas tumor ou avitaminose qualquer (explicaria muita
coisa, certamente). Mas não: Cachambi existe – e eu moro nele há 26 anos, ou
seja, moro no subúrbio carioca há 26 anos. Ou será que não?
O subúrbio está tão na moda que a
frase “o subúrbio está tão na moda” já deve estar na moda ela própria. Teatro,
cinema, televisão – o subúrbio tem aparecido tanto que até espaço para
suburbanos falarem de si próprios já está aparecendo também. Só nas
organizações globo, e só nos últimos dias de outubro e no corrente novembro, a
região deu as suas caras sorridentes, sofridas e gritantes várias vezes: duas
no jornal (“Coração Suburbano”, capa do Segundo Caderno do dia 25 último, e
“Complexo Urbano”, capa do Prosa e Verso de dois dias depois) e inúmeras outras
em novela das nove, praticamente fazendo do suburbano o novo gay de reality
show (novela sem suburbano ainda vira crime um dia, demonstração cruel e
desalmada de suburbiofobia). Mas... Que subúrbio é esse, afinal?
A resposta nem tão polêmica assim é
essa: o subúrbio deles é uma farsa. A resposta mais razoável e menos
apaixonada, que demanda alguma demonstração a sério e pela qual optarei, é
ligeiramente diferente: o subúrbio deles é uma mistura de reducionismo, anacronismo
e paternalismo, ismos todos embebidos, novidade nenhuma, no esquerdismo
genérico das nossas classes pensantes. (Pra fechar mais um parágrafo com
pergunta:) Querem ver?
Os subúrbios noveleiros são todos
muito parecidos: são cheios de gente mais ou menos vestida, mais ou menos
alfabetizada e mais ou menos escandalosa – e bem pra mais do que pra menos
gregária, especialmente em torno de qualquer carne queimando ou em mutirão da
solidariedade pra ajudar o vizinho amigo. As casas simples (“simples” é o adjetivo
por excelência aqui, com seu misto de condescendência e desprezo, solidariedade
e hierarquização) continuam lá, com seus eternos quintais e imaculadas pela
violência - só na novela casa simples de suburbano ainda não tem caco de vidro,
cerca medonha, muro enorme, plaquinha de cão bravo e outras singelezas que
tais. A demarcação, como de resto tudo nas novelas, apesar das sutilezas e
complexidades recentes, permanece clara: você precisa de dois minutos ou uma
cena para saber que personagem é suburbano e qual não é – mesmo os suburbanos
afluentes, e talvez especialmente esses, carregam seus vícios de origem: erros
de português aqui e ali, música alta, gritos e mais gritos. O subúrbio é um
grande cartoon pobre, mas via de regra feliz – não raro em oposição a ricos
atormentados, com famílias dilaceradas e enormes tristezas e mentiras por trás
de montanhas de dinheiro e afundadas em piscinas do tamanho dos subúrbios
alegres.
E o que nos dizem os jornais? As duas
matérias citadas prometem, cada qual a sua maneira, exatamente uma
desconstrução dessas e de outras simplificações. No Segundo Caderno, somos
informados de uma leva de filmes – realizados, em realização ou apenas
planejados – que trariam um subúrbio “poético
e além dos clichês”, não raro pelas mãos de cineastas “nascidos e criados no subúrbio”. Dentre estas produções, vejam
vocês a revolução, temos “"Claun"
(corruptela de clown, palhaço), longa-metragem inspirado no universo dos
bate-bolas, tradicionais figuras do carnaval das zonas Norte e Oeste”; “1994”, “um drama de época situado entre Brás de Pina - cenário também de
"A distração de Ivan" - e a Penha, que tem como pano de fundo as
lutas entre as torcidas organizadas de times de futebol” e, por último e
sem dúvida mais importante, toda a quebra impressionante de clichês trazida
pelo infelizmente ainda não concretizado “"Subúrbio", um “drama
recheado de hip-hop, samba, skate, evangélicos e folia de reis” que com
certeza vai dar o que falar. Resumindo: a esperança de um subúrbio “para além dos clichês” (nem discuto o
poético) residiria em bate-bolas, brigas de torcidas, hip-hop, samba e
evangélicos – algo como retratar uma zona sul para além dos clichês com
Corcovado, Pão de Açúcar, praia de Copacabana e turista branquelo com bermuda
esquisita e câmera prestes a ser roubada. Agora vai, né?
Mas e o Prosa e Verso, Felipe? Mais
intelectualizado, o caderno não traria soluções melhores? Bem, ele traz
antropóloga falando que o subúrbio “se
criou com a força da vizinhança”, jornalista afirmando que “a imagem de subúrbio decadente vem sofrendo
mudanças nos últimos anos com o aumento da classe C” e antropóloga
retornando para nos ensinar que “a
sociabilidade foi gerada pelos negros expulsos de cortiços do Centro,
ex-escravos, pessoas que já trabalhavam juntas no Porto, frequentavam as mesmas
rodas de samba, os mesmos terreiros”.
Moro no subúrbio há 26 anos. Ou, a
considerar nossas novelas, nosso principal jornal, nosso teatro cômico (peça Os Suburbanos: “Seis interessantes esquetes
compõem o espetáculo, que retrata a realidade suburbana carioca. Pagode e humor
são as homenagens à periferia, que com um sorriso no rosto e o peito aberto
enfrenta as mazelas do cotidiano”) e nossa televisão (em Suburbia, que
estreou cheia de elogios, dançarina de funk é das principais personagens), não
moro. O Cachambi nunca me pareceu decadente – ao contrário, só prospera desde
que nasci, e desde muito antes da recente e aclamada ascensão da classe C. Se o
Cachambi tem uma escola de samba, ela está longe das maiores e melhores, eu
nunca soube da existência da digníssima e tal ignorância jamais fez diferença
para mim – ou para qualquer dos meus amigos e coleguinhas de infância e começo
de adolescência, quando efetivamente passei a socializar com mais pessoas de
outros bairros. Aliás, dos cachambienses que conheci de perto, a maioria é
hostil ou indiferente ao samba – e o mesmo vale para o funk. Também nunca se
vestiram de clóvis. Não integram torcidas organizadas. São brancos – vários
portugueses, espanhóis, italianos e seus descendentes - e nunca foram a
terreiros (os pardos e negros, minoria absoluta no condomínio de sempre e na
minha antiga escolinha particular, não eram/são de religião afro-brasileira
também). Falam direitinho e às vezes, vejam vocês, até em tom de voz razoavelmente
baixo. Têm planos de saúde particulares. Cursaram ou cursam faculdades (em
alguns casos, como o meu, faculdades públicas, e até sem recorrerem às cotas
recentes). Diversos moram, olha que assustador, em prédios – prédios com
porteiro 24 horas, garagem, piscina, salão de festas, churrasqueira, parquinho
e afins, instalações mais do que comuns no Cachambi. Nem todo mundo ou anda nu
ou é evangélico – há variantes várias nesse meio aí. Lêem livros, e não só
best-sellers. Alguns se assumem direitistas e esquerdistas – e por efetivamente
estudarem, em diferentes graus, as doutrinas políticas dos dois campos. O
funcionalismo público está bem representado, principalmente por professores
(concursados, lembremos). E assim vai...
E é esse o subúrbio das matérias em O
Globo? Da novela? De Suburbia? Da peça Os Suburbanos? Não: sempre se seleciona
o subúrbio mais pobre, mais pitoresco, mais antagônico à Zona Sul – e mais
longínquo, geográfica e historicamente falando, mais em via de extinção. Sim,
há diferenças enormes entre o Grande Méier (com suas várias redes de escolas
particulares, sua Cultura Inglesa, sua Aliança Francesa, a Body Tech – essas
três últimas no segundo shopping em extensão da cidade, o Norte Shopping, que
afirma ainda ter “o mais moderno equipamento para boliches do mundo” -, o
Hospital Pasteur, um belo jardim público) e Sepetiba, com seus montes de
casinhas em permanente construção, trocentas igrejas evangélicas em cada
esquina, nenhum bom hospital particular ou público e a uma hora de um complexo
de entretenimento minimamente digno do nome. Há diferenças entre as posses e a
escolaridade média das respectivas populações. E se há... Por que não
mostrá-las? Por que optar sempre pelo mais caricato, pelo que fará o formador
de opinião mais abastado dar sorrisinho e exclamar “ah, esses suburbanos!”,
como se fossemos todos dos mais humildes passageiros do trem do Zorra Total?
Esse texto não visa, porém, separar um
bom subúrbio de um subúrbio ruim. É óbvio que, em linhas gerais, prefiro o
Cachambi a Sepetiba – como prefiro Botafogo ao Cachambi. O ponto é outro: o
subúrbio que estão vendendo pra você, caro leitor, é na melhor das hipóteses
parcial. É mixórdia de cadeiras na calçada que somem a cada dia (como
reconhecem Paulo Lins na matéria do Prosa e, de certa forma, Cacá Diegues na
matéria do Segundo Caderno) com caricaturas. É só, em suma, mais uma versão do
velho pobrismo da nossa esquerda – que só se sustenta, obviamente, eliminando
todo o subúrbio que prosperou e prospera (e estudou e estuda) há muitas décadas.
Que tal voltarmos um pouquinho o olhar para esses lados de cá – que não são
poucos?
Citando de cabeça um blogueiro muito
melhor que eu, que por sua vez deve ter parafraseado o Joãozinho Trinta - “Eu
não gosto de pobre. Quem gosta de pobre é a esquerda – eu quero que os pobres
ganhem dinheiro e deixem de ser pobres” -, digo que eu quero um subúrbio rico –
o que o rico que vive de vender um subúrbio pobre
claramente não vai querer.
Felipe Svaluto Paúl