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domingo, fevereiro 25, 2007

A “ciência pura” e o liberalismo: uma interpretação a partir de Henrique Morize*

*- Texto originalmente produzido como trabalho para o curso História do Liberalismo no Brasil, ministrado pelo professor Fernando Faria na Universidade Federal Fluminense, segundo semestre de 2006

A ciência divide-se basicamente em dois campos: o campo da ciência pura e o campo da ciência abstrata. A afirmação não expressa absolutamente a única divisão possível, ou mesmo convencional, da ciência; seria absurdo um estudante de História pretender definição tão simples para conceito tão antigo e tão disputado – inclusive pela própria História, ainda hoje um tanto perdida entre o caráter de Ciência e o de Disciplina, ou mesmo Técnica e, para alguns poucos radicais, não mais do que Narrativa. Mas é igualmente inegável, embora nem tão óbvio, que a divisão acima não só foi como é válida e útil, fazendo parte do vocabulário mesmo dos cientistas, dos praticantes da ciência. Exemplo simples e rápido aqui, pertinente a esse trabalho: a divisão entre ciência pura e aplicada foi utilizada tanto por Henrique Morize - o cientista cujas falas servirão de base às reflexões desse texto – quanto pelo seu biógrafo, se é possível conceituar assim o autor do curto livro – curto, não desinteressante; mas curto o suficiente para não ser exatamente uma biografia digna do nome - sobre Morize aqui analisado, o senhor Antonio Augusto Passos Videira, não apenas para se referir ao tempo de Morize como também em suas próprias reflexões sobre o contemporâneo. Não fosse isso o bastante, e desejoso de mostrar a contemporaneidade talvez máxima da divisão, lembro que a versão em português da Wikipedia – enciclopédia virtual, sensação em meios estudantis de todos os segmentos, gratuita e atualizada ininterruptamente pelos seus próprios freqüentadores – indica exatamente essa divisão – ao lado da oposição entre ciência “natural” e “social” – logo no começo de seu verbete Ciência. Ou seja: num espaço de três séculos – Morize começa a atuar na ciência e na administração de entidades científicas ainda no século XIX; a biografia é de 2003 e a consulta a Wikipedia foi feita por mim há minutos atrás – a divisão que norteará as reflexões desse trabalho é feita por um Engenheiro, Astrônomo e Professor de Física Experimental, o nosso Henrique Morize; por um filósofo e doutor em epistemologia e História das Ciências, o já citado Antonio Augusto; e por um estudante anônimo, usuário da Enciclopédia Livre, a Wikipedia[1]. Ou seja: a divisão apontada foi pertinente ontem e é pertinente hoje, valendo para muito além da mera curiosidade histórica.

Mas que pertinência é essa? Sim, é relevante, é citada, mas o que exatamente expressa? E de que forma será trabalhada aqui, justificando sua presença em trabalho para curso cujo tema a princípio passa tão ao largo da temática própria das Ciências Naturais, nas quais essa divisão se faz realmente pertinente? As perguntas retóricas pretendem expressar possíveis dúvidas de quem chegou até esse momento do texto – e conhece o tema e o desenrolar do curso para o qual ele é produzido; não chegarão a seu sentido mais popular, prestando-se sim para a elaboração do meu discurso, mas em absoluto consideradas como já respondidas. A explicação que acredito demandada é a que segue: a diferenciação entre ciência pura e ciência aplicada coloca alguns problemas para o liberalismo; coloca já de imediato, a partir da definição das duas coisas – da lógica que orienta essa divisão e da lógica que orienta o liberalismo. A lógica que orienta a divisão, e que veremos novamente mais adiante, pode ser simplificada assim: há uma ciência especulativa, uma ciência teórica, voltada para a análise de problemas cujas soluções – se vierem a ser produzidas – não poderão ser imediatamente utilizadas em prol de determinada iniciativa humana, seja ela da parte de quem for, Estado, classe, indivíduo; a ciência pura tem por objetivo único a compreensão da verdade sobre determinado fenômeno, é espécie de ciência pela ciência, parafraseando a relação dos parnasianos com a poesia. Em franca oposição está a ciência aplicada, ou prática, que visa exatamente a resolução de problemas mais imediatos da existência humana, a produção ou aperfeiçoamento de máquinas, de técnicas, de vacinas e remédios; visa atender a um fim específico, determinado por grupos ou instâncias diversos – uma medição de fronteiras em nome de um Estado-Nação, uma fiandeira mais sofisticada e durável em prol de industriais, ou mais segura em prol de trabalhadores -, mas nunca é ‘desinteressada’, como deveria ser, por definição, a ciência pura, cujo interesse único seria quase estético, intelectual apenas, o prazer de ter feito pesquisas, reflexões, cálculos capazes de apontar novos rumos para a compreensão de determinado fenômeno da existência, do Universo. É fato que essa divisão, como acho que fica claro a um contemporâneo letrado que leia isso, guarda o seu artificialismo; não apenas o confirmo como digo que o próprio Morize – o cientista já citado, prosélito da ciência pura, a fonte principal desse texto; chego a ele com mais detalhes em breve – também reconhecia em parte isso, ainda que de forma um tanto contraditória. Mas é também fato, como já apontado, que essa divisão teve e tem o seu lugar no léxico dos cientistas e mesmo dos meros entusiastas da ciência, como pode ter sido o caso do desconhecido que a incluiu no verbete da Wikipedia. Foi pertinente, é pertinente; foi incômoda para o liberalismo, é incômoda para o liberalismo. Por quê?

Como é de conhecimento bastante geral, o liberalismo tem como uma de suas idéias principais a idéia de mercado. Grosseiramente, como o espaço pede, podemos dizer que o liberalismo propriamente econômico – a despeito aqui do artificialismo também dessa divisão – nasce junto com a idéia de mercado[2]. Mercado entendido aqui como um espaço, não exatamente físico, talvez mesmo como um ente, no qual se darão as relações de troca e com capacidade não apenas para servir de instância de regulação para a sociedade como também para suplantar - em eficiência e justiça – o Estado nesse mesma e fundamental função. A partir dessa premissa temos, ao longo da história, diferentes tipos de liberalismos e liberais, de acordo com os contextos históricos de produção da ideologia, da filiação a essa ou aquela escola de pensamento e, seria um pecado maior que o comum esquecer disso aqui, das próprias peculiaridades de cada autor, de cada pensador liberal. O que nos interessa especificamente, daí a citação anterior às duas instâncias, é o peso que cada liberal, que cada tipo de liberalismo – se é que é possível definir isso, mas fiquemos com o senso comum acadêmico por ora -, que cada escola dará ao Mercado e ao Estado no partilhar (ou não) dessa atividade reguladora do social. Aqui nos deslocamos desde o liberalismo-social – que seria um dos ‘tipos’ de liberalismo, que confere peso razoável ao Estado na mediação das desigualdades; o termo vale e foi usado em um contexto histórico específico, o italiano, primeira metade do século XX essencialmente, em parte ainda hoje. Norberto Bobbio seria um liberal-social, mas também o seria sua professora Hannah Arendt ou o nosso Celso Lafer, que foi aluno dos dois? O próprio Bobbio escreveu texto sobre esse ‘tipo’ em A Teoria Geral da Política, ed. Campus, 2000, nele fazendo o termo preceder esse contexto italiano, localizando-o nas inóspitas (para o liberalismo) terras germânicas e conferindo tamanha amplitude ao termo e considerando tantas as suas manifestações que ele pode ser tanto um socialismo democrático quando uma exótica social-democracia liberal – até o pouco conhecido anarco-capitalismo, ou libertarianism norte-americano, que reivindica a supremacia absoluta do Mercado, pregando mesmo a extinção do Estado – sim, forças armadas e fronteiras inclusive – e que busca se apropriar, de forma bastante discutível, de referências históricas tão diversas quanto os Founding Fathers e Ludwig Von Mises. Enfim, a discussão está aí e os liberais têm elementos vários – teóricos, empíricos, históricos, contemporâneos – para que façam suas escolhas; um exemplo de questão que cabe nesse debate? A que nos interessa aqui: a relação entre o Estado e a Ciência. Ao reivindicar uma ciência pura em qualquer contexto já se coloca, inevitavelmente, como e principalmente por que essa ciência – lembrando, que não almeja outro fim que não o conhecimento – seria desenvolvida, e, mais importante numa sociedade moderna, financiada. Ao colocar isso no final do século XIX e –principalmente, quando assume cargos de chefia – no século XX, o nosso Henrique Morize está colocando uma questão fundamental a ordem liberal que, pelo menos – e essencialmente, mas essa é outra discussão – em tese vigorava no Brasil. Ora, se essa ciência não terá seu desenvolvimento orientado por ente, grupo, indivíduo ou interesse algum, aqui cabe tanto o grande inimigo do liberalismo como um todo – o Estado – quanto os heróis escolhidos por essa visão de mundo: o Mercado e aqueles que nele atuam, resumidos simploriamente em fornecedores e consumidores. Questão resolvida; a ciência pura permanecerá assim – pura, intocada, distante tanto do Estado quanto do Mercado, próxima apenas do nobre cientista desinteressado, que vai conduzi-la para nada além da busca pela verdade? Assim seria se não estivéssemos diante de um ligeiro problema: estamos falando de uma sociedade profundamente material, na qual o sustento advém da escolha e desenvolvimento de uma profissão, profissão essa em algum grau – maior ou menor, e mesmo simultaneamente – voltada para o Estado ou para o Mercado; o mundo demanda essa escolha – e demandava ainda mais para um Morize totalmente desprovido do mecenato que poderia sustentar essa vida de pesquisa independente. Morize, cuja trajetória esteve sempre ligada ao Estado – desde a sua formação básica até o ensino, tanto na Escola Politécnica quanto no Observatório Nacional – fará a sua escolha: caberá ao Estado patrocinar a ciência, a ciência pura, desinteressada; patrocinar, não orientá-la – pelo contrário, os cientistas é que deveriam ser chamados a orientar o Estado, técnicos, conhecedores que são de determinados assuntos sobre os quais os políticos nada sabem. Morize defenderá então o que se tornou o paradigma do intelectual brasileiro (inclui-se o artista aqui?): demandará do Estado financiamento, mas também autonomia, uma ‘independência’ profissional paralela à dependência material. Isso orientou e orienta a nossa visão de universidade – grande sonho de Morize era a constituição de universidades científicas no Brasil -, e em parte a nossa visão de cultura e mesmo de mundo. É visão liberal? É visão antiliberal? Parece que os liberais da época se viram diante do mesmo problema, e é impossível, pela escassez de fontes, pelo tempo disponível e pela extensão pretendida para esse texto fechar a questão; é possível dizer que um homem como Joaquim Murtinho mostrava-se algo contraditório quanto ao tema – defendia a privatização das faculdades aqui existentes, mas sabia que o Estado, em algum grau, precisaria colaborar com os institutos agrícolas a fim de modernizar essa atividade que ele tanto prezava. Não há porque imaginarmos que os liberais brasileiros, há época, fossem mais anarco-capitalistas nesse aspecto; mas também não é possível dizer que tinham a defesa da ciência pura exatamente em alta conta, tamanhas as dificuldades de Morize – e de seus colaboradores – na divulgação dessa idéia, que acabou por não produzir resultados práticos os mais vistosos durante sua vida. Se não os liberais, se não os homens de letras e ideólogos, pelo menos a elite cafeeira tinha projetos bem distantes e bem mais terrenos que as observações astronômicas do Morize simpatizante da astrofísica. Na incapacidade de fazer um apanhado razoável do que pensavam os liberais da Primeira República a respeito, passarei na segunda parte desse trabalho a identificar com mais calma o que pensava Morize e seus correligionários – sim, pois travarão uma luta - sobre a ciência pura e como o Estado deveria colaborar com ela, para em seguida, na conclusão, retomar a partir dessa leitura o já apontado e discutido problema que Morize colocava para o liberalismo nessa sua cruzada.

***

Henrique Morize era francês. Era originalmente Henry Morize, sendo ‘Henrique’ o aportuguesamento óbvio de seu primeiro nome – não é mera tentativa de aclimatação, ele chega mesmo a se nacionalizar brasileiro; na verdade, se a expressão – tão comum nas narrativas de tantos e tantos imigrantes – ‘sou profundamente brasileiro’ e suas variações têm a sua lógica – e têm mesmo -, essa lógica funciona sem dúvida para Morize. Lembro que ele aqui chega com 14 anos, fugindo da dupla perda – sentimental e material – sofrida pela sua família com a morte de seus dois pais em apenas uma década, com recursos apenas razoáveis – sabe-se que a tia fundará rapidamente um colégio para moças de razoável sucesso, vê-se que profundamente pobres eles não chegaram -, sendo obrigado a trabalhar e totalmente carente de qualquer educação que pudéssemos chamar de científica. Já aqui destoa do estereótipo do cientista estrangeiro que chegava ao Brasil há época: um sujeito já formado, adulto, de razoável reputação entre seus pares no país de origem e desejoso de uma aventura tropical, um encontro com a ainda exuberante vitalidade ecológica dos trópicos e, de repente, com uma população de mestiçagem singular em uma época de racialismo científico. Morize não: chegará aqui ainda como adolescente e será aqui que fará – integralmente – a sua formação propriamente acadêmica e desenvolverá suas atividades de pesquisa e, porque não dizer, suas atividades políticas em prol da ciência pura no país; normal que nutrisse tão grande apreço pelo país no qual viveu a larga maioria dos seus anos, país que deu a ele, apesar dos inúmeros pesares, a educação científica que tanto o fascinou por toda a vida.

A biografia de Morize a partir da sua chegada ao Brasil não é propriamente movimentada, ou pelo menos não se pode depreender isso do esforço literário -como já dito, não muito profundo ou mesmo ‘biográfico’, pelas limitações mesmas da coleção editorial em que se insere – feito pelo citado Antonio Videira: Morize se instalará com a família inicialmente em Santos, decorrência da observação, ainda do navio, de um dos muitos surtos de febre amarela que acometiam naqueles anos a capital da República brasileira, a princípio o primeiro destino daqueles franceses; a família permanece apenas algumas semanas em Santos, mudando-se logo para São Paulo, onde será fundado o já citado colégio para moças da tia de Morize e ele conseguirá seu primeiro emprego, como ajudante na famosa livraria Garroux. Emprego importante, aparentemente, segundo breve comentário de Videira – tudo no livro é bastante breve -, por ter sido um lugar no qual Morize se punha a conhecer e ler as obras que chegavam para venda, sendo repreendido pelos patrões por isso; diante das escassas informações – peço que seja perdoada a cantilena, são escassas mesmo – e considerando-se a importância do contato com as letras na juventude para a formação de tantos intelectuais, é provável que Morize tenha, se não despertado, ao menos amadurecido seu interesse pela ciência nessa ocasião. Mas será em seu emprego seguinte, na Estrada de Ferro do Estado de São Paulo, que ele realmente se verá diante de uma dessas oportunidades fundamentais em trajetórias pessoais, oportunidades, momentos que se perdem nas estruturas e impessoalidades outras de toda história que se pretenda ‘ de longa duração’, e que só podem ser recuperados devidamente em biografias mesmo; será no desenvolvimento desse ofício que Morize conhecerá o engenheiro Eduardo José de Moraes que, vendo o potencial daquele jovem, seu interesse pelas ciências, irá recomendar a ele o caminho acadêmico mais imediato possível – e bastante lógico, na cultura bacharelesca da época: o curso de Direito no Largo de São Francisco paulistano. Morize ingressa no curso em 1880 mas logo o abandona, vindo para o Rio cursar a Escola Politécnica do estado – inexistia ainda uma similiar paulista, que seria fundada apenas em 1893. A partir daqui serão dois os lugares nos quais desenvolverá suas atividades, como estudante inicialmente e logo como pesquisador – isso ainda durante a vida estudantil – e professor: a própria Escola Politécnica e o hoje Observatório Nacional, então ainda Imperial Observatório do Rio de Janeiro, sediado no antigo marco da cidade, o Morro do Castelo. Morize se formará como engenheiro industrial na Escola Politécnica em 1890 – diversas doenças e decorrentes interrupções dos estudos explicam o longo tempo na graduação – e posteriormente conseguirá ainda as habilitações de engenheiro geógrafo (1918) e engenheiro civil (1920) pela mesma instituição, da qual se torna professor catedrático de física experimental já em 1898; no mesmo ano consegue ainda pela Politécnica o grau de Doutor em Ciências Físicas e Matemáticas. No Observatório Morize entrará como aluno-astrônomo – a preocupação com a formação prática se soma aqui com a escassez de funcionários, cabendo aos alunos parte das operações da instituição – em 1884, chegando à posição de terceiro astrônomo já no ano seguinte e se tornando astrônomo titular em 1890; ocupará o cargo de diretor da instituição de forma interina em diferentes momentos, tornando-se o diretor titular em 1908 – ficará no cargo até 1929, vindo a falecer no ano seguinte.

Nesses anos brasileiros há uma característica – aqui a fonte é novamente o trabalho de Videira – em Morize que permaneceria inalterável, uma constante própria mesmo de sua personalidade: uma calma, uma temperança que o mantinha afastado de qualquer das polêmicas tão típicas dos meios intelectuais brasileiros do período; ao contrário, ao invés de se desgastar em artigos e artigos para jornais, em textos normalmente apaixonados, Morize buscava exatamente a posição razoável do cientista, o convencimento pela razão, e uma razão aqui profundamente técnica, não filosófica – é assim, por exemplo, que combaterá o positivismo no ensino brasileiro, um aspecto de sua vida infelizmente apenas citado por Videira. O interessante nesse temperamento é que ele em dado momento – o momento do Morize estudante, ainda jovem (apesar da formação algo tardia) e sem cargo de maior importância – ele se confundirá com uma apatia aparente, com um descaso para com o cenário geral da ciência brasileira – no máximo teríamos um trabalhador dedicado de duas instituições públicas, em meio a certamente outros tantos trabalhadores dedicados, contemporâneos dele ou não; fazendo essa avaliação, é inevitável o contraste com o Morize posterior, das três primeiras décadas do século XX, o Morize diretor do Observatório Nacional, constante orador em prol da ciência pura no Brasil. Aqui a interpretação de Videira é interessante: Morize teria, podemos dizer, deixado para falar quando a oportunidade de ser realmente ouvido aparecesse; estrangeiro e tímido, mais valeria executar bem suas funções acadêmico-profissionais – e a forma rápida com a qual galgou a hierarquia do Observatório talvez indique exatamente essa dedicação, sempre lembrada por Videira – do que se pôr a falar com base em autoridade praticamente nenhuma que não a do discurso, a de uma razão presumida. A idéia é interessante, embora, como convém novamente dizer, não possa ser provada pela escassez de material apresentado; o que essas mesmas poucas fontes não nos permitem negar, porém, é esse caráter proselitista e combativo de Morize em seus últimos trinta anos de vida. Será com base em falas do próprio nesse período – bem como em comentários de Videira – que passarei finalmente para a análise desse proselitismo do cientista franco-brasileiro em prol da ciência pura.

Uma primeira fala que é analisada por Videira e cabe nesse trabalho é o discurso de Morize quando do lançamento da pedra fundamental do novo prédio do então Observatório do Rio de Janeiro, em São Cristóvão – onde permanece até hoje. Morize disse na ocasião que “(...) desenvolvimento científico, que constitui o mais elevado critério pelo qual se pode apreciar o grau de civilização alcançado por uma nacionalidade”, ou seja, reivindica para a ciência um papel que muitos costumam conferir à arte, aquilo comumente chamado de ‘cultura’, notadamente em sua expressão mais erudita; típico para um período de profundo cientificismo, nem tão típico assim para um país no qual – já foi comentado aqui, e é mesmo um tanto ocioso repetir – a cultura bacharelesca gozava ainda de status privilegiado, a despeito da crescente inserção política dos ‘técnicos’, notadamente médicos e engenheiros. Mas não é esse o ponto fundamental para nós nessa fala: o que realmente nos interessa aqui é a defesa que Morize fará da ciência pura. Diz ele: “(...) não trepido em afirmar que todos os estudos, mesmo os mais abstratos, são de transcendente utilidade que infelizmente escapa àqueles que não possuem cultura suficiente.” Veja-se que Morize ainda não estabeleceu – como fará em breve, chegarei a isso no parágrafo seguinte – uma hierarquia entre ciência pura e ciência aplicada; está no momento interessado apenas em legitimar a primeira, dizendo que os estudos teóricos, “como todos os estudos”, têm a sua contribuição a dar para, como já vimos, a elevação da nacionalidade brasileira em seu “grau de civilização”. Aqui cabe ainda notarmos o discurso do técnico, que reivindica para si – e para seus pares, evidentemente – uma compreensão que transcende a dos demais mortais, que “não possuem cultura suficiente” para perceberem a pertinência de tal ou qual estudo que considerem mais ‘abstrato’. A mesma lógica se apresenta de forma ainda mais clara – e talvez mesmo grosseira, para certos padrões – no seguinte trecho: “Seja-me, entretanto, permitido observar que o critério de utilidade maior ou menor, especialmente em se tratando de assuntos científicos, é muito relativo, e depende em larga escala do grau de cultura daquele que se atreve a emitir o juízo”. Aqui temos em certo sentido a expressão, ainda que certamente não intencional, de um princípio caro ao liberalismo – a relatividade do valor, as diferentes valorações que grupos e pessoas atribuem a coisas, fundamental para a idéia e a defesa do mercado como instância reguladora do social – mas também encontramos, me parece, a reafirmação de uma superioridade que pode perfeitamente ser usada em prol de um governo de ‘técnicos’, um dos grandes temores do liberalismo moderno. Esse ponto é importantíssimo e será retomado na conclusão desse trabalho.

O texto seguinte citado por Antonio Videira indica exatamente a hierarquia já citada entre ciência pura e ciência abstrata, apontando, como o leitor certamente imagina, para a preponderância da primeira sobre a segunda: “O proclamar que a ciência pura deve ter a primazia sobre a aplicada não significa de forma alguma que seja esta destituída de valor. Muito pelo contrário. Se a primeira constitui um ideal muitas vezes inatingível, a segunda apresenta problemas mais numerosos e geralmente de solução mais fácil e que, por isso mesmo, ficam mais ao alcance de pesquisadores obrigados a gastar em trabalhos profissionais a maior parte do tempo”. A citação longa se justifica pela quantidade de informações pertinentes que podemos apreender daí; primeiro, Morize novamente começa clamando por legitimidade, no caso a legitimidade de uma hierarquia que, subentende-se, considera correta. Estabelecer essa hierarquia não é deslegitimar a ciência aplicada, pelo contrário; esta última extrairia sua legitimidade exatamente de sua característica fundamental, seu caráter prático, que permitiria ao pesquisador – a intenção é essa, parece explícito para mim – dedicar-se a ela diante da necessidade – já comentada por mim aqui – de trabalhar para ganhar a vida. Essa interpretação se coaduna com a visão de Morize segundo a qual o pesquisador de ciência pura teria como um de seus obstáculos no país a impossibilidade mais elementar e material de se dedicar como devido a seus complexos estudos, já que se via o tempo todo obrigado pelo Estado a produzir resultados práticos para o governo com aquilo que sabia – no caso de Morize, a participação na demarcação de terras, inclusive como integrante da Comissão de Limites com a Argentina, subordinado ao Ministério do Exterior. Ou seja: em um país pouco afeito a ciência – o que Morize não costuma dizer, talvez novamente pela sua condição de estrangeiro (aliada a timidez que lhe parecia ser característica e, claro, a uma estratégia), mas era citado com freqüência por seus colegas de classe e causa brasileiros – as ‘horas de lazer’ seriam os únicos momentos nos quais o pesquisador poderia se dedicar aquilo que realmente o interessa, para além das razões de Estado; se essa situação está dada, melhor que se faça uma ciência aplicada mesmo, ligada ao próprio trabalho no seu sentido mais estrito dos pesquisadores a ela dedicados. Mas é bom notar que a hierarquia não desaparece com a legitimação, e os termos o comprovam: a ciência aplicada apresenta ‘problemas (...) geralmente de solução mais fácil”. Ou seja: é pertinente, mas não atinge a complexidade das questões com as quais trabalha a superior ciência pura.

Agora – passadas as falas em busca de legitimidade, seja para a ciência pura, reivindicando sua utilidade, seja para a hierarquia entre os dois tipos de ciência – passo a um aspecto mais central a discussão que farei na conclusão, e que já vem sendo apresentada aqui. Trata-se de apontar como Morize defendia como fundamental a participação ativa do Estado como promotor da ciência pura. Como já vimos, para Morize a ciência é o indicador máximo da civilização de um país; a ciência pura é não apenas legítima como é superior à prática, àquela que costuma, pelo menos em algum grau e em alguns campos, receber a atenção do governo; a conclusão óbvia dessas duas premissas é que a ciência pura merece atenção caso se queira que o Brasil apareça no rol das nações civilizadas, o que a princípio se coadunaria com as intenções europeizantes da elite brasileira do período. Aqui não há espaço para o mercado, esse ente que aparentemente vinha relegando a ciência pura ao mais profundo descaso; o ente a atuar deveria ser o Estado, como aliás era exatamente nas nações civilizadas do mundo: “Nos Estados Unidos, onde o serviço meteorológico é opulentamente subvencionado pelo Governo[grifo meu], conseguiu colossal desenvolvimento...”. São palavras de Morize, tratando aqui de assunto que conhecia como pesquisador a administrador, a prática da meteorologia. Diz o intérprete Antonio Videira: “Morize pensava que, se esse país conseguiu se tornar o mais rico do mundo, foi porque soube reconhecer a importância da ciência pura, o que seria evidenciado pelo apoio governamental dado à ciência [grifo meu]”. A conclusão de Videira não se apóia em exemplo único: em 1916 Morize escreverá ao Ministro da Agricultura pedindo apoio financeiro para publicar a revista da Sociedade Brasileira de Ciências[grifo meu], ou seja, pedindo verba governamental para a publicação de uma revista editada por associação privada – a dita Sociedade, embrião da até hoje existente Academia Brasileira de Ciências; a mudança de nome se deu com Morize ainda vivo e ele foi contrário a ela, por parecer conferir um formalismo demasiado à instituição[3]. Nesse pedido Morize dirá: “Nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, por toda parte, tratam os governos de fomentar pesquisas e descobertas em todos os campos da ciência [grifo meu]”. Não sei se uma colocação mais explícita seria possível: temos aqui novamente o recurso ao exemplo das nações civilizadas – que o seriam, lembremos, exatamente por cultivar a ciência -, usado agora em correspondência a um Ministro brasileiro, certamente na expectativa de que esse destinatário não quisesse outra coisa para o Brasil que não se aproximar dessas nações em progresso e civilização, para o que deveria seguir o exemplo delas – investir na ciência, começando se possível pela verba pleiteada para a edição da revista. O trecho termina com mais uma longa frase que merece a citação na íntegra aqui, principalmente por ser a confirmação de algo já comentado, o ‘governo dos técnicos’. Diz Morize: “Naqueles países, os cientistas têm sido realmente mobilizados, formando conselhos consultivos, aos quais são submetidos as mais importantes questões cujas soluções dependem de conhecimentos especiais, raros nos Estadistas, aos quais é habitualmente confiado o governo das nações, devido a sua cultura quase exclusivamente literária e jurídica”. É certo que aqui não temos o governo dos técnicos em sua mais assombrosa expressão, na qual os técnicos se tornam eles próprios os governantes; essa idéia grassará em momento de crise do liberalismo, um pouco posterior à morte de Morize, a década de 30; na fala do cientista ainda há espaço para os estadistas, os homens da cultura bacharelesca; mas seria preciso que eles consultassem os técnicos sempre que o problema fosse, digamos, exótico demais para eles.

Cumpre, para terminar essa seção do trabalho, lembrar novamente a já citada autonomia, neutralidade que a ciência deveria ter em relação ao governo que a fomenta, bem como em relação a todas as forças e interesses político-sociais da nação. Nos estatutos de fundação da já citada Rádio Sociedade há trecho que diz: “a rádio Sociedade (...) não se envolverá jamais em nenhum assunto de natureza profissional, industrial, comercial ou política”.

***

Passo a um rápido comentário sobre as questões já citadas ao longo do texto que articulam a ciência pura de Morize – e a forma que ele considerava necessária para a sua propagação, a existência sob financiamento estatal – e o liberalismo. O primeiro ponto, aquele ao qual chegamos de forma bastante imediata – e já citado nesse trabalho – é o da ciência pura como algo para além das necessidades do mercado. Como Morize faz questão de dizer, sendo acompanhado aí por Videira, a ciência pura visa outros fins que não aqueles imediatos almejados pelo mercado. Se é intenção de tal empresa ou tal ramo de negócios a elaboração de um frigorífico mais sofisticado e funcional, para isso está aí a ciência aplicada, prática; será ela que se debruçará sobre possíveis novas espessuras para as portas do frigorífico, novos materiais, novas técnicas de congelamento do que nele fica armazenado; a ciência pura – lembremos, superior à aplicada – teria como único fim a busca pela verdade científica. O problema para o liberalismo aqui é óbvio: por que financiar algo que não responde aos interesses do mercado, pelo contrário, tem pretensões totalizantes de alcançar verdades inalcançáveis para os incultos mortais outros, que precisarão se contentar em crer nos cientistas e financiar suas pesquisas ‘puras’ acreditando que em algum momento surgirá resultado materialmente útil? É problema cuja discussão foi e é pertinente para alguém que se identifique com o liberalismo ou não, e que vai além mesmo das ciências propriamente naturais, cabendo também ao financiamento das pesquisas nas áreas de humanidades. As respostas liberais são diferentes e não cabem aqui; mas o problema é inegável, e Morize ajuda, imagino, a vislumbra-lo em dado momento histórico.

O segundo problema é corolário do primeiro: é a lógica dos técnicos presente de forma pouco disfarçada – e matizada, como já falei – no discurso de Morize; o ‘governo dos técnicos’ ainda estava longe de ser ameaça ao mundo bacharelesco no qual Morize atuou politicamente, mas surgiu no horizonte pouco tempo depois dele morrer, e não me parece absurdo considerar as falas que faz nesse sentido como indicativos de que essa lógica já existia. Ora, essa lógica vai diretamente de encontro ao liberalismo, que pretende exatamente tornar as decisões o mais individuais possíveis, mantendo um governo o mais limitado possível – algo que só é possível quando esse governo abdica de encontrar uma série de ‘verdades’ e deixa a cargo de cada indivíduo essa busca, ou mesmo o abandono dessa busca. Os técnicos estariam aí exatamente para encontrar essas verdades científicas e orientar a ação do Estado a partir delas.

Por outro lado, convém indicar que a lógica da ciência pura tem também, em certas situações – de autoritarismo principalmente – um aspecto bastante simpático ao liberalismo, pois, como já dito, procura uma autonomia não só em relação ao mercado – mas também em relação ao Estado. Ou seja, em um cenário no qual um Estado autoritário impinge ao cidadão a crença em certas ‘verdades’ científicas específicas – a experiência totalitária do século XX é exemplo disso – a prática de uma ciência desinteressada pode significar exatamente a prática de uma ciência não-ideológica e, nesse sentido, constituir-se enquanto um pequeno espaço – ou momento – no qual o cientista poderá gozar de alguma liberdade intelectual.

Felipe Svaluto Paúl

Dezembro/2006.

Bibliografia

VIDEIRA, A.A.P. Henrique Morize e o ideal de ciência pura na república velha.Rio de Janeiro: FGV Editora, 2003.



[1] Já que estou recorrendo a Wikipedia como autoridade a fim de mostrar a pertinência da divisão apontada e estamos falando de ciência, convém referendar a autoridade da Enciclopédia Livre – aparentemente fonte das mais discutíveis, dadas as características que citei – lançando mão exatamente de um estudo da prestigiosa revista científica Nature. A revista enviou para pesquisadores, acadêmicos, especialistas enfim, entradas, verbetes de duas enciclopédias, sem informar a eles de onde cada texto havia sido retirado: cada especialista recebeu uma cópia do texto da Wikipedia para certo verbete e uma cópia da entrada da mundialmente notória Enciclopédia Britannica sobre o mesmo verbete. A missão: identificar erros nos textos, de clamorosas falhas conceituais até detalhes. O resultado: foram encontrados quatro erros graves em entradas da Wikipedia, assim como foram encontrados quatro erros graves nas entradas da Enciclopédia Britannica; os textos da Wikipedia apresentaram 162 “erros, omissões ou trechos incompreensíveis”, contra 123 de mesmo tipo da Enciclopédia Britannica. A própria Nature considerou o resultado surpreendente, dadas exatamente as peculiaridades já citadas da Wikipedia.

[2] ROSANVALLON, Pierre. O Liberalismo Econômico. Bauru: EDUSC, 2002

[3] Não ignoro em absoluto que essa citação rápida evidencia uma lacuna no trabalho: uma discussão mais profunda – na medida da profundidade não muito significativa do livro trabalhado, como já dito inúmeras vezes – sobre como Morize se valeu dessa e de outras instituições – a Rádio Sociedade a ela ligada, o Observatório Nacional e mesmo a Escola Politécnica - para a defesa da ciência pura. De certa forma as citações espalhadas pelo texto contemplam em pequena parte isso, muitas delas tendo sido proferidas em contexto no qual aparece uma dessas instituições – o caso da fala quando do lançamento da pedra fundamental da nova sede do Observatório serve aqui como exemplo. Optei por não entrar mais nessa questão primeiro pela falta de informações presentes no livro do Videira, segundo por não contemplar exatamente a discussão que pretendo fazer aqui e, por último e talvez mais importante, por considerar demasiado para um trabalho que já vai ultrapassando o tamanho que deveria assumir.

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