sexta-feira, maio 14, 2004
VITÓRIA
Vencemos, senhores. A duas quartas avançava o relógio para além das dez, matinais, e nós vencemos. Digam que não sentiram algo diferente nesse momento: pensem bem se não foram acometidos por algo além do habitual ardor juvenil enquanto açoitavam operários ébrios; lembrem os mais aristocratas se não estranharam o cinza londrino que durante cinco minutos jogou para longe as febres tropicais naquela manhã. Lembraram? Pois é, e isso foi apenas um vislumbre da cena edênica- rumores dão conta que até mesmo Molusco foi ilustre vítima, tendo passado cinco minutos a manter concordância de gênero e, pasmem, número. E tudo isso irradiado a partir de um centro, mais acostumado a reproduzir sandices que irradiar belezas: Universidade Federal Fluminense, UFF, campus do Gragoatá- e eu fui ator desse drama ímpar, épico até, embora ninguém tenha se dado conta disso.
Para explicar aos senhores os fatos é preciso voltar mais uma Quarta, mais ou menos no mesmo horário. Aula de História Antiga- sim, sim: a idosa marxista. Já chega a senhora acompanhada dos recadistas- espécie ímpar, sobrevivem apenas em universidades, alimentando-se do silêncio dos outros. São office-boys ideológicos, sendo sucinto. Os moços falam sobre o Ato pela Moradia, naquele momento já afamado dados os inúmeros folhetos que recebemos a respeito nos dias anteriores. O Ato é importantíssimo, alunos precisam de moradia, a luta é antiga e tudo mais. Convidam-nos a compor a massa protestante e alguns tantos aceitam, levantando-se heróicos de suas carteiras. Ação legítima e não necessariamente burra. Mas eis que ocorre o inusitado, como naqueles momentos que precedem as aparições de Rod Serling em Twilight Zone: muitos ficam em sala. Estupefação no rosto dos recadistas, saem algo chateados; uma certa felicidade minha, contida, própria. Mas é sabido que felicidade de liberal dura pouco- ao contrário de felicidades populares, que duram todo um carnaval ou enquanto o juiz não expedir a reintegração de posse da terra invadida. Os recadistas, após zanzarem no corredor como moscas de padaria, voltam a sala. Alguma revolta é sentida: lamentam termos ficado em sala, fazem novo pequeno discurso; somos acusados de egoístas( oh!) e individualistas(oh!oh!). Alguns poucos cedem e vão, mas muitos ainda permanecem: faz-se então a anarquia. Recadistas falam com a professora, pretendem a “liberação da aula”, eufemismo para “o não haver aula”. Levanto-me e falo com ela também, sem efeito: a senhora está convencida a não dar faltas, saem os que quiserem. Para mim está ótimo, é medida liberal inclusive; mas é claro que os recadistas não concordam. É preciso “o não haver aula”, pois haveria aqueles que só ficaram temendo perder matéria. E aqueles que querem a aula, que não querem ir ao Ato? Essa pergunta só pode surgir na mente do leitor menos acostumado com o pensamento esquerdista: é simplesmente impossível a um recadista conceber que alguém pode não desejar participar do ato a partir de decisão individual derivada de processo inteligente de análise; todos que não querem ir ao famigerado o fazem por outra razão- no caso, não querem perder aula. Solução: acaba-se com a aula!- há certa lógica aí, a mesma lógica profunda de um governo comunista quando elimina dissidentes.
E foi o que conseguiram, ainda que por caminho diverso e originalíssimo: o recadista-mor do dia sugere a distinta mestra que ela dê aula naquela quarta e repita a mesma aula na sexta! A senhora provavelmente achou idéia genial e conciliadora, pois logo a adotou. Resultado óbvio: os alunos que queriam aula, imbuídos pelo típico imediatismo humano, saem da sala- não em direção ao Ato, mas a suas casas; mais vale chegar cedo na quarta que na sexta. Os recadistas parecem felizes, pois saem também, exultantes pela sapiência de seu membro-mor. Mas a distinta senhora é obrigada a largar sua bolsa, que no momento já era erguida da mesa com a calma dos antigos: alunos permaneceram em sala.
Que alunos? Eu e mais sete, se a memória não falha. De todos apenas eu tinha objeções a reivindicação residencial; os outros apenas queriam aula, esta função máxima da universidade para a qual a senhorinha é paga por todos os contribuintes do território brasileiro. E não tivemos: ela se pôs a conversar. Aproveitei para sondar o marxismo da mestra e ouvi algumas coisas interessantes, ilhas num mar de sandices várias, nas quais Cuba quase se transformou em exemplo de democracia e liberdade.
Saímos e discutimos os eventos daquela Quarta-Feira Negra durante todo o caminho até as barcas- e mesmo na embarcação a conversa continuava, animada pela belíssima vista, uma paisagem que parece ser a corporificação mesma da liberdade.
***
E essa foi a Quarta-Feira Negra. Passo agora a quarta seguinte, o dia da revanche.
Como o texto já está longo em demasia e eu realmente não acredito que minhas piadas ocasionais e pouco engraçadas compensem tamanha prolixidade, tentarei a síntese do momento inicial: o Ato não deu certo, outro foi convocado, mais folhetos distribuídos, nova Quarta, recadistas voltam a sala, novos discursos.
(seco e moderno, gostaram?)
Começam então os diferenciais: muitos na turma já tinham se convencido da necessidade da aula e do enorme atraso da matéria de História Antiga; conversei com vários nesses dias anteriores e ninguém disse estar disposto a perder aula novamente. Articulei então estratégia de resistência: bastaria que aqueles desejosos da aula permanecessem sentados e eu me encarregaria de convencer a senhorinha da justiça de nosso anseio. Sim, não é do meu feitio, dirão os que melhor me conhecem. Mas peço perdão às damas e digo que provavelmente o faria mesmo, pois estava ainda puto, muito puto com o havido na semana anterior. Claro que poderia fraquejar; também poderia ser ignorado pela senhorinha- aliás isso é bem provável, consigo vê-la argumentando que não poderia dar aula “naquelas condições”, vaga como Gushiken e seus “valores da sociedade” supostamente ofendidos. Mas parecia que alguém do Alto pela verdade olhava naquele momento e então tudo se desenrolou sem que eu precisasse mover músculo. E isso graças a providencial ação do Comandante.
Lembram do Comandante, do texto anterior? Pois é, ele estava ausente na Quarta Negra- salvo engano encontrava-se em congresso da UEES, ou algum soviete similar. Mas na outra Quarta já estava entre nós, e ergueu-se para colocar ordem na zona que se iniciava. Com característica eloqüência- talhada sem dúvida por anos de militância estudantil- o Comandante propõe duas votações: a primeira para decidir se haveria a segunda; e a segunda para decidir se haveria ou não aula- não lembro se usou eufemismos para isso. Disse também que gostaria de ouvir outras opiniões, que alguém com idéia diversa se manifestasse- considerei aquilo uma mixórdia de estratégia a fim de aprofundar o caráter pretensamente democrático do que se desenrolava e desejo de que eu dissesse alguma coisa. Confesso que pensei por alguns minutos em levantar e denunciar o que todo bom leitor liberal bem sabe: a falta de legitimidade da decisão acerca do haver ou não aula. Citaria Tocqueville, falaria calmamente e pouco, terminando por sugerir seguirmos o infamado individualismo(oh!oh!oh!horror!):aqueles que desejassem participar do ato estariam livres para fazê-lo, cabendo a eles a responsabilidade por essa decisão, ou seja, o não assistir a aula. Indivíduo/liberdade/responsabilidade, trinômio liberal, algo novíssimo para aquelas mentes acostumadas a decidir transferindo responsabilidade para a massa anódina. Por que não fiz tudo isso? Simples: porque tinha certeza da vitória do justo. E assim se deu.
Primeira votação: quase todos aceitam a votação Segunda- sou o único a votar contra. Segunda votação: 9, salvo engano, defendem o fim da aula- contra mais de 15 favoráveis a aula. Comandante pergunta sobre as abstenções- aqui também não sei exatamente o que pretendia, se era apenas condicionamento derivado de votações estudantis ou ele pretendia algum recurso bizarro se o número de abstenções fosse maior que o de votantes pela aula. Se foi isso ele deu com burros n`água: riram todos, turma e recadistas- estes, aliás, um pouco revoltados: cabeludo alto sai balançando a cabeça com força, como a pensar: “esses burgueses filhinhos de papai!”. Quase dei tchauzinho para eles; prometo que o faço da próxima vez.
E termina aqui. Termina não com a vitória do liberalismo, por razões óbvias. Mas finda com vitória de algo muito maior e importante: com a vitória da legitimidade, do “Estado de Direito”, algo raríssimo em universidade. Talvez os recadistas nunca tenham visto algo semelhante antes, talvez por isso o violento sacolejar de cabelos do alto moço. Peço apenas que se acostumem: tenho mais de 4 anos pela frente na UFF e essa turma tem número ímpar de pessoas que, independente de matiz político, primam por qualidade rara: sensatez.
Felipe Svaluto Paúl(parabenizando a todos os colegas que, honrando a qualificação de estudantes, preferem a aula a qualquer outra coisa)
Vencemos, senhores. A duas quartas avançava o relógio para além das dez, matinais, e nós vencemos. Digam que não sentiram algo diferente nesse momento: pensem bem se não foram acometidos por algo além do habitual ardor juvenil enquanto açoitavam operários ébrios; lembrem os mais aristocratas se não estranharam o cinza londrino que durante cinco minutos jogou para longe as febres tropicais naquela manhã. Lembraram? Pois é, e isso foi apenas um vislumbre da cena edênica- rumores dão conta que até mesmo Molusco foi ilustre vítima, tendo passado cinco minutos a manter concordância de gênero e, pasmem, número. E tudo isso irradiado a partir de um centro, mais acostumado a reproduzir sandices que irradiar belezas: Universidade Federal Fluminense, UFF, campus do Gragoatá- e eu fui ator desse drama ímpar, épico até, embora ninguém tenha se dado conta disso.
Para explicar aos senhores os fatos é preciso voltar mais uma Quarta, mais ou menos no mesmo horário. Aula de História Antiga- sim, sim: a idosa marxista. Já chega a senhora acompanhada dos recadistas- espécie ímpar, sobrevivem apenas em universidades, alimentando-se do silêncio dos outros. São office-boys ideológicos, sendo sucinto. Os moços falam sobre o Ato pela Moradia, naquele momento já afamado dados os inúmeros folhetos que recebemos a respeito nos dias anteriores. O Ato é importantíssimo, alunos precisam de moradia, a luta é antiga e tudo mais. Convidam-nos a compor a massa protestante e alguns tantos aceitam, levantando-se heróicos de suas carteiras. Ação legítima e não necessariamente burra. Mas eis que ocorre o inusitado, como naqueles momentos que precedem as aparições de Rod Serling em Twilight Zone: muitos ficam em sala. Estupefação no rosto dos recadistas, saem algo chateados; uma certa felicidade minha, contida, própria. Mas é sabido que felicidade de liberal dura pouco- ao contrário de felicidades populares, que duram todo um carnaval ou enquanto o juiz não expedir a reintegração de posse da terra invadida. Os recadistas, após zanzarem no corredor como moscas de padaria, voltam a sala. Alguma revolta é sentida: lamentam termos ficado em sala, fazem novo pequeno discurso; somos acusados de egoístas( oh!) e individualistas(oh!oh!). Alguns poucos cedem e vão, mas muitos ainda permanecem: faz-se então a anarquia. Recadistas falam com a professora, pretendem a “liberação da aula”, eufemismo para “o não haver aula”. Levanto-me e falo com ela também, sem efeito: a senhora está convencida a não dar faltas, saem os que quiserem. Para mim está ótimo, é medida liberal inclusive; mas é claro que os recadistas não concordam. É preciso “o não haver aula”, pois haveria aqueles que só ficaram temendo perder matéria. E aqueles que querem a aula, que não querem ir ao Ato? Essa pergunta só pode surgir na mente do leitor menos acostumado com o pensamento esquerdista: é simplesmente impossível a um recadista conceber que alguém pode não desejar participar do ato a partir de decisão individual derivada de processo inteligente de análise; todos que não querem ir ao famigerado o fazem por outra razão- no caso, não querem perder aula. Solução: acaba-se com a aula!- há certa lógica aí, a mesma lógica profunda de um governo comunista quando elimina dissidentes.
E foi o que conseguiram, ainda que por caminho diverso e originalíssimo: o recadista-mor do dia sugere a distinta mestra que ela dê aula naquela quarta e repita a mesma aula na sexta! A senhora provavelmente achou idéia genial e conciliadora, pois logo a adotou. Resultado óbvio: os alunos que queriam aula, imbuídos pelo típico imediatismo humano, saem da sala- não em direção ao Ato, mas a suas casas; mais vale chegar cedo na quarta que na sexta. Os recadistas parecem felizes, pois saem também, exultantes pela sapiência de seu membro-mor. Mas a distinta senhora é obrigada a largar sua bolsa, que no momento já era erguida da mesa com a calma dos antigos: alunos permaneceram em sala.
Que alunos? Eu e mais sete, se a memória não falha. De todos apenas eu tinha objeções a reivindicação residencial; os outros apenas queriam aula, esta função máxima da universidade para a qual a senhorinha é paga por todos os contribuintes do território brasileiro. E não tivemos: ela se pôs a conversar. Aproveitei para sondar o marxismo da mestra e ouvi algumas coisas interessantes, ilhas num mar de sandices várias, nas quais Cuba quase se transformou em exemplo de democracia e liberdade.
Saímos e discutimos os eventos daquela Quarta-Feira Negra durante todo o caminho até as barcas- e mesmo na embarcação a conversa continuava, animada pela belíssima vista, uma paisagem que parece ser a corporificação mesma da liberdade.
***
E essa foi a Quarta-Feira Negra. Passo agora a quarta seguinte, o dia da revanche.
Como o texto já está longo em demasia e eu realmente não acredito que minhas piadas ocasionais e pouco engraçadas compensem tamanha prolixidade, tentarei a síntese do momento inicial: o Ato não deu certo, outro foi convocado, mais folhetos distribuídos, nova Quarta, recadistas voltam a sala, novos discursos.
(seco e moderno, gostaram?)
Começam então os diferenciais: muitos na turma já tinham se convencido da necessidade da aula e do enorme atraso da matéria de História Antiga; conversei com vários nesses dias anteriores e ninguém disse estar disposto a perder aula novamente. Articulei então estratégia de resistência: bastaria que aqueles desejosos da aula permanecessem sentados e eu me encarregaria de convencer a senhorinha da justiça de nosso anseio. Sim, não é do meu feitio, dirão os que melhor me conhecem. Mas peço perdão às damas e digo que provavelmente o faria mesmo, pois estava ainda puto, muito puto com o havido na semana anterior. Claro que poderia fraquejar; também poderia ser ignorado pela senhorinha- aliás isso é bem provável, consigo vê-la argumentando que não poderia dar aula “naquelas condições”, vaga como Gushiken e seus “valores da sociedade” supostamente ofendidos. Mas parecia que alguém do Alto pela verdade olhava naquele momento e então tudo se desenrolou sem que eu precisasse mover músculo. E isso graças a providencial ação do Comandante.
Lembram do Comandante, do texto anterior? Pois é, ele estava ausente na Quarta Negra- salvo engano encontrava-se em congresso da UEES, ou algum soviete similar. Mas na outra Quarta já estava entre nós, e ergueu-se para colocar ordem na zona que se iniciava. Com característica eloqüência- talhada sem dúvida por anos de militância estudantil- o Comandante propõe duas votações: a primeira para decidir se haveria a segunda; e a segunda para decidir se haveria ou não aula- não lembro se usou eufemismos para isso. Disse também que gostaria de ouvir outras opiniões, que alguém com idéia diversa se manifestasse- considerei aquilo uma mixórdia de estratégia a fim de aprofundar o caráter pretensamente democrático do que se desenrolava e desejo de que eu dissesse alguma coisa. Confesso que pensei por alguns minutos em levantar e denunciar o que todo bom leitor liberal bem sabe: a falta de legitimidade da decisão acerca do haver ou não aula. Citaria Tocqueville, falaria calmamente e pouco, terminando por sugerir seguirmos o infamado individualismo(oh!oh!oh!horror!):aqueles que desejassem participar do ato estariam livres para fazê-lo, cabendo a eles a responsabilidade por essa decisão, ou seja, o não assistir a aula. Indivíduo/liberdade/responsabilidade, trinômio liberal, algo novíssimo para aquelas mentes acostumadas a decidir transferindo responsabilidade para a massa anódina. Por que não fiz tudo isso? Simples: porque tinha certeza da vitória do justo. E assim se deu.
Primeira votação: quase todos aceitam a votação Segunda- sou o único a votar contra. Segunda votação: 9, salvo engano, defendem o fim da aula- contra mais de 15 favoráveis a aula. Comandante pergunta sobre as abstenções- aqui também não sei exatamente o que pretendia, se era apenas condicionamento derivado de votações estudantis ou ele pretendia algum recurso bizarro se o número de abstenções fosse maior que o de votantes pela aula. Se foi isso ele deu com burros n`água: riram todos, turma e recadistas- estes, aliás, um pouco revoltados: cabeludo alto sai balançando a cabeça com força, como a pensar: “esses burgueses filhinhos de papai!”. Quase dei tchauzinho para eles; prometo que o faço da próxima vez.
E termina aqui. Termina não com a vitória do liberalismo, por razões óbvias. Mas finda com vitória de algo muito maior e importante: com a vitória da legitimidade, do “Estado de Direito”, algo raríssimo em universidade. Talvez os recadistas nunca tenham visto algo semelhante antes, talvez por isso o violento sacolejar de cabelos do alto moço. Peço apenas que se acostumem: tenho mais de 4 anos pela frente na UFF e essa turma tem número ímpar de pessoas que, independente de matiz político, primam por qualidade rara: sensatez.
Felipe Svaluto Paúl(parabenizando a todos os colegas que, honrando a qualificação de estudantes, preferem a aula a qualquer outra coisa)