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quinta-feira, fevereiro 18, 2010

SERVIDÃO VOLUNTÁRIA

Rainer Wenger, que mais tarde descobriríamos professor de Educação Física e Ciências Sociais, está animado com a perspectiva de ministrar um projeto - espécie de curso paralelo à grade comum, até onde se pode compreender - sobre anarquismo na escola secundária alemã onde já treina (também entusiasticamente) o time de pólo aquático local. Homem de esquerda, fã de rock e adepto de visual um tanto menos professoral que o comum entre seus pares docentes, Wenger é cumprimentado com aparente sinceridade por diversos alunos quando chega ao colégio e se prepara para discutir a desejada disciplina de verão com a diretora da instituição - apenas para descobrir que um outro professor, conservador à caricatura, já havia se antecipado e escolhido ensinar as ideias e movimentos anarquistas aos jovens do lugar. Chateado, o treinador e cientista social acaba abraçando um outro projeto, também dentro da área política - e sob a atenção da esposa grávida, também professora da escola, começará a bolar alguma forma interessante de ensinar a seus pupilos o que entendia como característico de uma rubrica bastante abrangente na área dos conceitos e sistemas de governo: a autocracia.

Assim começa A Onda(Die Welle), filme alemão de 2008 que enfim assisti na semana passada. A partir do ponto onde paramos, o que o espectador vê a seguir pode ser descrito como o curto ciclo vital - não chega a uma semana - de um movimento estudantil vagamente fascista: testemunhamos seu nascimento, seguimos o desenvolvimento impressionante que alcança em dias e nos surpreendemos com a morte abrupta e violenta que põe fim a uma ascendente em dado momento aparentemente irreversível. Comum a essas três fases, ainda que diversos em cada um deles, temos não apenas os adolescentes, entusiastas e massa formadora da organização, mas também e principalmente Wenger: longe de ser uma iniciativa juvenil de garotos e garotas subitamente apaixonados por formas autocráticas de governo, A Onda - como o grupo é nomeado - é inicialmente apenas um experimento didático concebido e conduzido pelo professor Rainer, que pretende com a iniciativa apresentar aos colegiais que orienta uma experiência da autocracia para muito além dos livros e de aulas expositivas - como aquelas, aparentemente chatíssimas, que logo veremos de esguelha o professor conservador ministrar a seus alunos no projeto sobre anarquia.

A Onda começa como disciplina, ordem, mesmo auto-ajuda - levantar quando quer dizer algo durante a aula, esperar o colega terminar para completar ou replicar o que foi falado, chamar o outrora professor camarada (e agora líder) de senhor, manter postura decente na carteira e até respirar corretamente, para melhorar a concentração: no princípio reticentes ou debochados, as cobaias de Wenger - com a exceção de três dissidentes, um dos quais acabaria voltando atrás rapidamente - logo se veem seguindo conscientemente as ordens do professor - e elaborando eles próprios novos regulamentos e características para o agrupamento, num crescente de participação que só faz alimentar no Guia que servem a certeza de que a experiência funciona e que ao término do projeto seus alunos entenderão realmente o que é viver uma legítima experiência autocrática.

Mas a criatura, tipicamente, logo escaparia ao controle do criador: contaminados pela dominação carismática e inflamados por um senso de pertencimento que muitos ali - Tim, jovem sem amigos e com pai ausente, como símbolo maior do caso - jamais haviam experimentado, os militantes da Onda decidirão que os muros da escola representam limite inaceitável para a força do que sentiam e vão organizar, à revelia do próprio Sr.Wenger, uma espetacular ação para dar conta à cidade do ente que orgulhosamente formam. A partir desse e de outros incidentes, o filme escalará em violência até o final em que, já algo desesperado, um Fuhrer arrependido enfim abandonará a vaidade que o consumia e tentará, num último e drástico ato, terminar a tragédia que começara - o que acabará por conseguir, não sem pelo menos uma terrível consequência.

Como estudo sobre o totalitarismo, o filme é um exemplar razoável: inseguranças e peculiaridades particulares aparecem bem como combustíveis subjacentes ao interesse de alguns estudantes pelo grupo, toque mais íntimo a lembrar como um coletivo pode atrair exatamente por dissolver e ignorar nossos demônios de todo dia; a exclusão do outro, do estranho que até ontem era amigo, aparece bem também, com sutileza e agressividade se alternando como mecanismos de rejeição - ainda que a última, opção igualmente acertada, cresça conforme se expande A Onda e aumentam os poderes reais e aparentes do grupo; a servidão como uma escolha - Lisa, personagem que está entre os menos abastados do colégio, lembra não por acaso que o uniforme suprime a escolha das roupas pela manhã, adaptando a padronização exigida a demanda pessoal sua - me lembrou O Fenômeno Totalitário, do finado liberal uspiano Roque Spencer Maciel de Barros, no qual o totalitarismo aparece como uma opção por não ter opção; a vandalização ou destruição de símbolos religiosos e capitalistas, percepção especialmente inteligente de que tanto capitalismo quanto religião são, em última instância, concorrentes do totalitarismo - ou eventualmente totalitarismos concorrentes, como no caso do fundamentalismo islâmico -, por mais que possam se submeter ou mesmo se associar momentaneamente a ele em determinados contextos históricos; o indivíduo como inimigo máximo do totalitarismo, mesmo quando mal há objeção estritamente política, apenas um desafio aparentemente banal à autoridade - a jovem Karo se recusando a usar o uniforme porque não fica bem de branco...

Apesar de toda essa compreensão bastante correta - e mesmo instigante, em alguns momentos - de muitas das características de um movimento (se não de um regime) totalitário, senti falta enorme de elemento fundamental para qualquer totalitarismo: a ideologia. Talvez seguindo interpretação bastante corrente que menospreza a importância do discurso - seria mero irracionalismo de ocasião - para nazismo e fascismos, o filme e Wenger não se preocupam em absoluto na conformação de uma doutrina mínima para embasar a união da Onda, qualquer coisa para além da camaradagem e do ardor: só no fim da película, já pretendendo desbaratar o que criou, veremos o professor ensaiando uma crítica econômica ao capitalismo e insuflando certo nacionalismo imediato em seus estudantes, que o apoiarão animadamente - provavelmente uma tentativa do filme insinuar, seguindo a linha citada, que o conteúdo retórico importa realmente pouco para o totalitarismo, desde que já haja militantes devidamente mobilizados pela mera força da mobilização em si...

De toda forma, A Onda vale o tempo que se gasta a assisti-lo: é uma defesa da individualidade bastante informada e inteligente, coisa que não é exatamente corriqueira em qualquer cinema do mundo.

Felipe Svaluto Paúl (Pois é, vivo ainda...)

PS: Ao contrário desse blog bissexto aqui, tenho já há certo tempo outro no qual posto com mais frequência - o que não significa que seja frequente por lá, também: no Libertad Matters, o leitor do Warfare State poderá encontrar curtos posts meus - e de alguns poucos amigos, todos ainda mais eventuais que eu - noticiando basicamente ações e ameaças contra a liberdade ao redor do mundo, Brasil inclusive - e eventualmente também alguma coisa mais tipicamente histórica, resenha ou ensaio recuperando passagem importante da luta pela liberdade em tempos idos.

A quem quiser realmente acompanhar esse ou aquele, a dica - sem dúvida algo narcisista, mas bastante prática também: torne-se seguidor do blog que te apetecer, de preferência ambos; você será informado (é só abrir a conta no blogger) de qualquer atualização que excepcionalmente surja aqui ou lá...

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