<$BlogRSDUrl$>

segunda-feira, outubro 02, 2006

UM POUCO SOBRE AS ELEIÇÕES – MIUDEZAS NEM TÃO IMPERTINENTES

Tive e tenho reservas em tratar das eleições aqui; não por ter assumido perspectiva derrotista – embora assuma sem problemas que considerava um segundo turno presidencial impossível, como consideravam também todos os analistas nem tão sérios. Tenho reservas simplesmente pelo de praxe, constantemente comentado por mim em discussões as mais diversas – mas principalmente em discussões sobre o aspecto político-ideológico brasileiro: a persistente ausência de um programa minimamente liberal nas eleições, em qualquer que seja a instância, em qualquer que seja o partido. Para não radicalizar, digo que há sim os poucos e bons, pingados aqui e ali: um de certa forma já clássico Afif em São Paulo, um infelizmente derrotado Gilberto Ramos no Rio, um extremamente surpreendente Bivar no pleito presidencial. Pois é, leitor atento e cidadão relapso: o inegavelmente tosco, simplório e parcamente alfabetizado Luciano Bivar – ser no qual votei com convicção há pouco mais de 24 horas – apresentou talvez o programa de governo mais liberal já visto desde a redemocratização brasileira, isso para não ser leviano e esquecer alguém de momentos anteriores. Ignorado pela mídia é óbvio que o fenômeno seria, o que não chega a ser exatamente demérito – perceber o ineditismo seria mérito da imprensa, mas o nível dela é tal que não pode nos surpreender em absoluto que não tenham percebido a coisa; a maioria ainda identifica neoliberalismo com FHC, o homem que não leu e não gostou do Consenso de Washington. O que realmente me chateou foi o fato de tantos liberais por aí – mais ou menos conhecidos, notório e excelente blogueiro, resistentes e muitas vezes seríssimos liberais orkutianos – tenham preferido também o folclore e a desinformação a análise de uma cartilha simples, que não demandava muito tempo de leitura, disponível há priscas eras no site oficial do candidato. Enfim, esqueceram Bivar; mas Bivar não esqueceu o liberalismo, mesmo que mal consiga pronunciar a palavra. O liberalismo apareceu nessas eleições a nível nacional e sim, isso me animou bastante, ainda que inegavelmente menos do que a pragmática felicidade pelo segundo turno conquistado.
Mas não é de Bivar que pretendo falar aqui; falarei de outro ser, em alguns aspectos bem diferente dele – bem falante, intelectualizado, articulado, toda a pinta de político talhado há tempos na arte da retórica que tanto faltou ao Bivar. Jovem, simpático, de discurso duro, enfático – e socialista. Apesar disso, um entre tantos: inegavelmente mais articulado que a maioria, mas não uma agulha no palheiro; cometeu sandice conceitual típica dos dele e não trouxe exatamente nada de novo a um rol de argumentos há muito conhecidos, embora certamente seja porta-voz privilegiado deles. Não mereceria um post – é cria das universidades públicas Brasil afora como tantos outros, a maioria deles já em deformação intelectual desde o nosso ensino médio profunda e inegavelmente doutrinário. Estou falando aqui de Marcelo Freixo, integrante do PSOL, presença na digníssima UFF na quinta-feira que passou. Mas, pergunta o leitor atento ali de cima, por que estou falando dele então, ser ainda longe de ser o primeiro entre os pares? Por um detalhe pequeno e fundamental: Marcelo Freixo, confesso que para minha enorme surpresa – impressionantes meus problemas em dosar direito otimismo e pessimismo -, foi eleito deputado estadual para a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro.
Antes de demonstrar a nefandice dessa eleição, uma ressalva simpática: Marcelo Freixo é muitas coisas, e perigosas coisas, como se verá aqui em breve. Mas ele não é do mesmo tipo que a maioria dos nossos deputados eleitos, que não merecem outro adjetivo que não o de quadrilheiros. As quadrilhas são diversas e a cada nova conversa com cidadão fluminense você descobre uma nova, isso quando o seu ilustre representante – o seu, não o meu; aprendi o linguajar do antibrasileirismo – não consegue o feito de integrar várias delas simultaneamente, tamanhas as interpenetrações no pujante e auspicioso mundo do crime carioca. Nada sei sobre envolvimento de Freixo com a máfia dos caça-níqueis, das ambulâncias, do combustível adulterado, grupos de extermínio, tráfico de drogas ou corrupção policial. Nada sei mesmo, não há ironia alguma aí; isso pode até se dever ao fato de que eu simplesmente desconhecia o candidato até a referida quinta-feira, mas não acredito. É óbvio que não sou daqueles que imputa à esquerda qualquer exclusivismo moral, ou mesmo uma incapacidade inerente e programática, de natureza ideológica mesmo, que a afaste da corrupção – corrompendo-se vira automaticamente direita, numa interessante releitura de séculos de clivagem ideológica entre os dois campos maiores da disputa política. A minha leitura não é moral, é essencialmente mercadológica: a clientela política de Freixo é outra; ele não precisa se associar com o crime para conseguir votos – por mais que mereça reflexão o comportamento dele diante do tráfico de drogas, como falarei a seguir. Mas o fato é que o voto no candidato, o voto que o elegeu, foi um voto de legenda: o PSOL conseguiu nada surpreendentes – e absolutamente aterradores – 114.945 votos de legenda no Rio de Janeiro, segundo o UOL. Isso foi o suficiente para eleger Freixo, que individualmente obteve apenas 13.547 votos, concentrados em Niterói e Rio de Janeiro. Foi o suficiente para colocar na ALERJ, no meio dos quadrilheiros, um deputado explicitamente socialista – e isso está longe de ser algo positivo.
Quinta-feira, 28 de setembro, Universidade Federal Fluminense, aula de História Oral, professor Marcos Alvito. Aula interessante sobre tema interessante – para os outros, não para mim. Imigrantes portugueses por todo lado, pessoas animadas com seus entrevistados, professor com a empolgação – e a organização, e o bom humor – de sempre. Eis que no fim da aula ele dá o aviso: na aula seguinte dele, Realidade Brasileira – ou algo similar; título bem pretensioso para professor que é, apesar de inevitáveis (?) disparates eventuais, bastante razoável para os padrões uffianos – dois candidatos do PSOL se fariam presentes para falar sobre eleições e, em menor escala, seus projetos políticos. Quem me conhece sabe que eu tenho basicamente duas pretensões na UFF, pretensões que vêm se cristalizando ao longo do tempo: aprender o possível do pouco ensinado por lá e divulgar o máximo possível o ignorado liberalismo, sem considerar como “doença infantil” – pelo contrário, firmar posição nessa questão também – o anticomunismo, símbolo da unificação concretizada – pelo menos no virtual – através da Direita-UFF. Fiel a essas intenções vou eu assistir ao que Marcelo Freixo – e Agnaldo Fernandes, ignorado aqui posto que saudavelmente rejeitado pelo eleitor – tem a dizer.
Há um genocídio (sic) em curso; esse genocídio recebe “suporte ideológico” da classe média; é genocídio da população pobre, negra e favelada – sim, Freixo não usa o esdrúxulo termo “comunidade”, ponto para ele, pelo menos estilístico; entrar e sair das favelas é coisa das mais corriqueiras e simples, a classe média – representada por estudante de jornalismo da PUC – não entra lá porque não quer, é preconceituosa, sustentáculo ideológico de genocídio; o caveirão é um instrumento para a perpetuação desse genocídio. Mais estrutural – é possível ser menos? – é a questão do capitalismo, neoliberalismo – cada dia mais sinônimos nas diatribes conceituais – e do socialismo como a alternativa redentora, o sol a brilhar para todos os desvalidos da terra. Foi basicamente isso que disse Freixo, em fala curta; atentem para “genocídio” e “suporte ideológico da classe média”: a turma ali não atentou. A despeito da alienação reinante – visível para o experiente observador político já nas expressões e burburinhos ao longo das falas, previsível pelo curso superior dos alunos (cinema, fundamentalmente; o curso da alienação sofisticada) e confirmada pelas perguntas e colocações que fizeram – era de se esperar pelo menos uma pequena revolta ao som do termo “genocídio”. Não houve; mas era mesmo de se esperar? Vamos relembrar alguns genocídios da nossa História: o termo é recente e faço questão de fugir de anacronismos e polêmicas propriamente acadêmicas; fiquemos com o nosso século XX e nossos genocidas por excelência: Stalin e Mao Tse-Tung. Os dois, de notória inspiração maxista-leninista – e que encontram ainda vários e nem tão tímidos defensores pelo Brasil, na UFF inclusive – mataram dezenas de milhões de pessoas numa sucessão de horrores que faria Hitler, o nacional-socialista alemão, berrar ensandecidamente de inveja. Calcula-se – e o cálculo é da esquerda francesa, no LIVRO NEGRO DO COMUNISMO – que Stalin, Mao e demais camaradas (Lênin, Trótski, Che, Fidel, Kim pai e Kim filho norte-coreanos, Ho Chi Minh, Pol Pot) tenham matado 100 milhões de pessoas em menos de 100 anos, em experiências cobrindo boa parte da porção de terra do nosso planeta. Isso é genocídio; o que fez Hitler com os judeus foi genocídio. Genocídio implica uma prática de extermínio deliberada, intencional, orquestrada; para Freixo, a polícia fluminense é genocida, ou pelo menos o instrumento de um genocídio. E ele disse que os presentes ali, naquela sala – a “classe média”, base social da maioria dos cursos da UFF – compõem o suporte ideológico desse genocídio, comparando a todos nós, na melhor das hipóteses, com os alemães que levantavam os seus braços trágica e pateticamente ou os milhões de comunistas que serviram ao terror mais macabro da história humana e hoje ainda são saudados por muita gente em todo o mundo. Reação? Nenhuma. Ninguém entendeu? Talvez. Mas essa falta de entendimento é propriamente por burrice – havia pessoas inteligentes ali, sei disso -, por desconhecer os termos do discurso político e a História – provavelmente – ou por estarem já plenamente anestesiados mesmo, por estar a classe média há muito apta, e mesmo desejosa, de comprar esse discurso? De expiar determinados pecados que ela crê ter cometido e cometer? De aderir a um discurso no qual aparece como “elite” – desde que possa jogar o termo para o vizinho eleitor do Alckmin, obviamente – responsável pelas mazelas do país há 500 uniformes anos? Pois é essa a grande questão: a classe média, salvo um ou outro bolsão – religioso, católico principalmente, em parte militar, em parte, pequena parte talvez, de um médio empresariado, um ainda tímido mas notório renascer de liberais – está entregue e pronta para absorver uma série de elementos do discurso socialista – incluindo esse da “culpabilização e vitimização” ao qual Marcelo Freixo associa o termo mais duro, que mesmo assim não causa reação: genocídio.
E não há exemplo mais claro disso – há sim, e são vários; mas fiquemos com esse por hora, é mais imediato e irônico – que a própria eleição do Freixo. Meu caro: você não foi eleito pelos votos dos favelados; não foi eleito pelos votos dos meus vizinhos do Méier, da massa de Nova Iguaçu, do comerciante de Madureira, do vendedor de peixe de Caxias – não ignorando aqui a presença da abertura ao seu discurso em todos esses grupos, é notório que ele tem um poder de penetração ainda muito grande; mas é inegável o que te elegeu: o voto ideológico e de legenda no PSOL, fortíssimo aqui no Rio – e, veja só, caríssimo, um voto inegavelmente de classe média. Em dado momento das pesquisas eleitorais – e não faz tanto tempo assim, deve ter mudado pouco isso – Heloísa Helena atingia 26% entre aqueles com curso superior no Estado do Rio de Janeiro; o percentual era similar entre aqueles com mais de 10 salários mínimos de renda familiar; a candidata foi ovacionada e celebrada do outro lado do túnel – na socialista-caviar zona sul, notória por esse modalidade blasé e toda típica de esquerdismo, não raro associada ao esquerdismo-etílico dos celebrados botecos da nobre área. Foi chamada por Ancelmo Goés de “a queridinha da Zona Sul”, ou “a rainha da Zona Sul” – não leio as notinhas dele com tanta atenção assim. A depender dos favelados – que me perdoem eles se o termo soa pejorativo, às vezes soa para mim também; mas o próprio Freixo o usa...mudarei para “moradores de favelas” agora – o senhor ainda estaria nos movimentos sociais, ou será preciso me convencer de que só ensinou a eles o voto na legenda, e não o voto em você – o que seria fazer pouco da inteligência de pessoas que, e eu sei disso, são bem mais capazes do que se imagina. Repito, se é que você está me lendo – não seria o primeiro a achar esse texto pelo google: você foi eleito com os votos da classe média “genocida”, essa que não sobe o morro por “preconceito”, essa que vê a favela com maus olhos. Você foi eleito pela estupefação daqueles que assistiam ao debate na quinta-feira; você foi eleito pela traição da própria classe por parte de um grupo que, ao contrário de nós dois, não estudou História – e não sabe como os socialistas se livram das classes úteis assim que perdem a sua utilidade. Parabéns – não só para você, mas para todos os que construíram esse estado de coisas ao longo de tantos anos nos quais o debate brasileiro contou com a providencial – e nem de longe causada por uma interdição, mas por covardia nossa mesmo – ausência do liberalismo na disputa político-ideológica no Brasil.
Mas o genocídio, afinal, existe ou não? Não. Freixo não soube responder a pergunta fundamental que fiz – qual seria o interesse nesse genocídio? Os que nele morrem compõem uma clientela eleitoral profundamente explorada e importante – inclusive do Freixo, embora, como eu coloquei, sem dúvida alguma minoritária. A classe média que apóia soluções de força contra a população carente – que elege a família Bolsonaro, em parte um Álvaro Lins, um Itagiba – não é maior que a classe média da expiação nada católica que elege Marcelo Freixo, e mesmo ela sente sim, e profundamente, a morte de crianças de três anos em incursões policiais. Os que morrem nas incursões compõem ainda um exército de mão-de-obra fundamental para o funcionamento da cidade ilegal que tanto é alimentada por essa mesma classe média – cds piratas, jogos de computador piratas, tv a cabo ilegal, camelôs e suas falsificações diversas de objetos de consumo. A classe média, e nisso você acertou no debate, não vive sem a favela – porque não vive sem a ilegalidade; e a favela não vive sem a classe média exatamente pelo mesmo motivo. Ao contrário do que pensam ainda alguns discursos messiânicos – e o de Freixo flerta com isso – não há diferença moral significativa entre classes sociais no Brasil; o que há são diferentes formas de praticar uma imoralidade e uma corrupção há tempos coletivizada. Ao contrário do expresso em artigo do nosso deputado socialista, a percepção da classe média de que 80% dos moradores de favela estão ligados ao crime só erra em associá-los necessária e diretamente ao tráfico – e em esquecer que a proporção dos moradores do Méier ou da Barra da Tijuca envolvidos no crime é provavelmente a mesma. Na UFF mesmo um esquerdista me disse que faz sim “gato” para ter a sua tv a cabo; não vê problema algum nisso, é “caro demais”. Essa é a moral brasileira, seja o cidadão de classe baixa, média, alta ou imensurável. Ser ético no Brasil é cada vez mais trágico e difícil – e aqui retomo ponto citado acima: se é impossível associar Freixo com o tráfico – e eu acredito que seja mesmo – o candidato nos contou episódio no debate em que foi, pelo menos, leniente diante do poder que ele insiste em chamar de absoluto – e está praticamente certo nesse novo conceito sim. Freixo sobe favelas, conversa com rapazes com fuzis e desce, sem mais, sem pelo menos se preocupar em alertar uma autoridade para o problema que é, sim, óbvio, mas que nem por isso deve merecer nossa negligência – ou mesmo nossa aceitação às escondidas, como quando o candidato revelou que tal conversa poderia prejudicá-lo eleitoralmente, que ele não poderia aparecer na mídia naquela situação, o que preocupou partidários dele que estavam presentes no momento. Mas é como eu disse dias atrás: o presidente Lula sobe em favela e parece ignorar – ignorar no discurso, inclusive, quanto mais na prática – que naquele exato momento há menores de idade portando armas exclusivas do exército a metros dali, guardando um negócio de produtos proibidos pelo Estado, o ente que deveria deter o monopólio da força ostensiva – pois é, não sou um libertário...Como culpar Freixo diante disso? Como culpar Freixo por essa leniência, essa negligência, se o ministro Gilberto Gil precisa de autorização do tráfico para subir em favela carioca? Ora, culpando. A imoralidade está aí exatamente para que resistamos a ela; está aí para que devolvamos o um real do troco equivocado; está aí para não baixarmos as músicas pela internet; está aí para, nos pequenos gestos, nos diferenciarmos daqueles que sob a bandeira sempre vermelha de sangue fazem questão de nos acusar de genocidas exatamente por colaborarmos – não eu, vocês –, inclusive financeiramente, com a construção e desenvolvimento da favela como espaço privilegiado de certas ilegalidades brasileiras. Tenho sérias reservas a interpretações que associam liberalismo e cristianismo, isso é matéria complicada e merece leituras que ainda não fiz; mas uma coisa é certa – a lógica de um mundo pecador e do enorme esforço que o bom precisa fazer para não ceder ao Mal é de um palpável que imagino ser assustador para o mais descrente dos ateus.
***
Falei do Gilberto Ramos mais acima. Pois é, Ramos perdeu – e perdeu de muito. Fiz campanha para ele, campanha individual, solitária, mínima – feita essencialmente nos últimos dias da campanha, quando entreguei algo timidamente alguns dos santinhos que ele, a pedidos, me enviou. Consegui pelo menos mais quatro votos para ele, número que, se conseguido por todos os outros eleitores, talvez ainda não fosse suficiente para elegê-lo – mas o deixaria bem melhor do que os trágicos menos de nove mil votos que ele conseguiu. Trágicos por que? Por que Gilberto Ramos foi O ÚNICO CANDIDATO ASSUMIDAMENTE LIBERAL a concorrer no pleito fluminense, ignorando aqui o Bivar – que, a despeito do programa, não chegou a mencionar o termo liberalismo uma só vez. Ramos é membro do Instituto Liberal e sempre foi defensor de premissas básicas da ideologia: Estado bastante reduzido – não o “reformado” social democrata, mas sim um reduzido mesmo -, respeito pelos direitos individuais e pela ação reguladora dos livres agentes do mercado. Como já dito acima, essas idéias estão muito distantes da realidade do eleitor médio carioca – enquanto o voto ideológico socialista-caviar é suficiente para eleger Freixo, o voto liberal não parece nem conhecer a figura de Gilberto Ramos. Isso significa que o brasileiro é socialista? Não – o pensamento do brasileiro médio é bem mais complicado do que isso, tem vários elementos e merecia estudo de algum pesquisador mais sério; mas é mais uma das inúmeras evidências de que Carlos Nelson Coutinho – para pegar um dos luminares da sandice – está plenamente equivocado quando diz que a ideologia neoliberal está disseminada pela sociedade brasileira. A “ideologia neoliberal” – ignorando aqui qualquer discussão mais calma da expressão – não é suficiente nem para eleger um deputado estadual no Rio de Janeiro.
***
Diálogo no ônibus, hoje, motorista e cobradora:
_É, o Lula se deu mal, caiu do salto!
_ Ah, prá mim tanto faz, um como outro, é tudo igual.
_Nada, Lula se deu mal
_Ninguém tem pulso aqui para resolver isso não, o ruim agora é ter que votar de novo, queria que acabasse logo isso tudo
_ Se todo mundo pensar assim aí que a coisa não melhora mesmo

(pausa, partida no ônibus)
_Mas o que a gente precisava mesmo aqui era de um Fidel Castro!
_Ah, aí sim. Se vier alguém prá matar esse pessoal, aí eu defendo ele.

Esse é o povo brasileiro – o querido povo de Marcelo Freixo -, e não é muito diferente nas diversas classes sociais que o compõem. Esse é o povo, sim, sustentáculo do genocídio – mas de um bem diferente, de um ainda a ser engendrado, preparado, não por forças maléficas e conspiradoras, mas por uma série de trágicas circunstâncias que a maioria prefere ignorar – e a eleição de Lula e a clivagem entre “elite e povo” foi uma delas, circunstância que, com sorte, deixará de existir em breve.
***
E que dizer de Jandira, a candidata que escondeu sua plataforma pró-aborto? Sim, pró-aborto, porque “abortista”, disseram-me por aí, é mais uma das palavras suprimidas...A novilíngua campeou nesses tempos Moluscos, vamos torcer para que decline agora. Mas voltemos: Jandira, a candidata pró-aborto, perdeu fragorosamente! É a demonstração da força do voto religioso conservador – católico e evangélico, talvez espírita – aqui no Rio. É fato que esse voto também ajudou Lula, Crivella e outros nefandos – além de se opor a ganhos evidentemente liberais, como a união civil de homossexuais. Mas nesse momento eu comemoro; respeito mulheres que defendem o aborto até determinado mês da gestação, até três semanas – não concordo, mas respeito; mas não consigo enxergar com outros olhos que não os do genocídio – veja só, Freixo, como a sua palavra se aplica em vários contextos que não o equivocado – uma proposta que permite que bebês de nove meses sejam abortados – e, literalmente, retalhados; procurem as fotos - pelas suas queridas mamães. Perdeu Jandira, perdeu o aborto, perdeu o genocídio – ganhou a vida.
***
Esse fim-de-semana não teve apenas novidades, e não apenas eventos aprazíveis. As eleições nos revelaram nefandices várias – algumas surrais, ainda – ou principalmente por isso – que esperadas. Mas ao menos houve mudanças; pois há coisas que não mudam – não mudam, ficam presas em um conservadorismo estéril, patológico, numa indefinição eterna, em situação que transcende – embora estimule – quaisquer racionalizações. Por paradoxal que seja, esse conservadorismo talvez seja um ineditismo: talvez seja algo fundamentalmente novo, nunca antes experimentado por outro, um dos exóticos efeitos que a civilização pode ter sobre quem a leva a sério demais. Ou talvez isso seja só desculpa, desculpa; desculpa! A própria pulsão é, inevitavelmente, civilizada, ou mesmo civilizatória. Há códigos e regras para ela, bem definidos, compartilhados, usufruidos diariamente – até pelos genocidas aí de cima. E há a impossibilidade, a inércia inexplicável, o drama reproduzido como farsa; não, eu não conheço teatro grego, mas fica bonito assim – e isso é algo que eu um dia ainda espero fazer, proporcionar alguma experiência estética, para além da reflexão simples. O resto? Desistir? Sei lá; há quem nasça para umas coisas apenas. Torturar pessoa que não você mesmo é coisa que, definitivamente, não temos o direito de fazer. Paciência? Talvez. Mas paciência é jogo que se joga sozinho...

This page is powered by Blogger. Isn't yours?