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terça-feira, janeiro 31, 2006

REVISTA TEMPO: PROSELITISMO IDEOLÓGICO COM DINHEIRO PÚBLICO

Não é tarefa simples separar política de ciência. São definitivamente duas vocações, que em raros indivíduos se manifestam juntas em algum grau significativo. A arte da política é a arte do discurso, escrito ou falado, e cada vez mais a arte da propaganda; é a arte de compreender não só aquilo que se fala, o que se defende, mas talvez e mais ainda o que o ouvinte ou leitor entenderá do que você está dizendo. A política tende à simplificação, ao reducionismo, aos chavões; assim é pelo menos nas democracias modernas, de sufrágio universal, em que é preciso conquistar o voto do intelectual e do ignorante – esse ainda mais do que aquele, pois tendem a ser mais numerosos. A ciência, que não é arte, vai no caminho oposto: deve se pautar pelas minúcias, pelas relativizações, pela escolha cuidadosa de palavras e conceitos, pelas certezas sempre postas à prova; não deve buscar conquistar ou leitor ou ouvinte, mas sim a descobrir a verdade – independente do quanto ela possa doer aos ouvidos da massa, dos pares intelectuais ou do próprio cientista. Quando as duas coisas saem de seus lugares – quando o intelectual passa a se confundir com o político, quando o discurso acadêmico se torna mero proselitismo em nada diferente de um panfleto – estamos cada vez mais distantes da verdade, da busca pela verdade ao menos – para contentar os relativistas – e mais próximos de um discurso feito para agradar as platéias. Temos o exótico híbrido de nossos dois personagens citados acima: o intelectual-ignorante, figurinha das mais fáceis em departamentos universitários os mais diversos.
Que é o intelectual-ignorante do qual trato aqui? Não me refiro aquele que nada lê, que conquistou sua cadeira há décadas e que, beneficiado pela estabilidade do emprego sob o Leviatã, ocupa-se mais em convescotes diante da mesa do cafezinho que em produzir algo academicamente relevante. Não; o intelectual de que trato lê, e talvez até muito. Escreve, produz, fala, e normalmente bastante. Isso se dá porque o processo de reprodução desses intelectuais já está em curso há anos, décadas, séculos talvez; tem uma longa história a preservar e uma platéia constantemente renovada, formada por seus pares ou por aqueles que ambicionam sê-lo um dia. Não é por acaso que exatamente esses intelectuais se notabilizam pelo séquito de admiradores, constantemente embevecidos pela sapiência que emana do mestre, em torno do qual orbitam como, perdoem-me o lulismo de ocasião, moscas de padaria. A característica principal desse intelectual já foi citada acima: seu trabalho pretensamente acadêmico nada mais é do que eu apêndice de sua atuação política, sendo portanto recheado de todos os clichês possíveis a essa característica.
Cabe aqui um parêntese: não estou aqui condenando um trabalho acadêmico que seja também politicamente engajado. Afinal, que seria um trabalho acadêmico? Há milhares de páginas do mais fino conhecimento humano que foram produzidas bem distantes dos cânones da academia; há trabalhos jornalísticos que, para horror de historiadores e sociólogos corporativistas, desnudam uma realidade com muito mais precisam que o “cientista das humanidades” com mais diplomas pendurados na parede. Mas se a verdade pode e é alcançada muitas vezes através de trabalhos distantes da academia, também pode perfeitamente sê-lo na Academia; e se um dado pesquisador crê que a realidade se ordena a partir de lutas de classes, o trabalho dele pode bem chegar a essa conclusão – e ser um trabalho relevante, a ser discutido, por mais que eu ou outro discordemos das posições ali assumidas. o problema é que o intelectual-ignorante não busca o rigor acadêmico nem o rigor, digamos, jornalístico; arrisco-me a dizer que ele, na maioria das vezes, nem busca a verdade – busca sim enquadrar o mundo em uma visão previamente estabelecida, conformá-lo ao seu discurso e ao discurso da platéia.
Não me parece ser esse o caso de Ciro Flamarion Cardoso e Virgínia Fontes, definitivamente. Já li coisas do primeiro; achei interessantes, bem escritas e rigorosas. Foi graças a apostila por ele elaborada que o curso de História Antiga com Sônia Rebel foi um pouquinho mais palatável, até porque não havia citação a George Bush ou palavras de calão na obra, cujas engraçadas pictografias( é essa a palavra?) egípcias eram um refúgio diante do absurdo que imperava. Da segunda, conheço apenas a fala em uma palestra que assisti; foi melhor que a trágica exposição de Carlos Nelson Coutinho, o homem que não é pesquisador empírico. Teve seus poréns, como não poderia deixar de ter para mim, que não compartilho em absoluto da visão de mundo da professora. Mas havia um quê de rigor ali, de pesquisa, de esforço mental razoável – temperado, é verdade, por um certo pedantismo: Virgínia segura o copo de água como se estivesse às margens do Sena a discorrer sobre Marx, com direito ao mindinho em riste inclusive. Menos mal: a esquerda-caviar costuma ser mais interessante e relevante que suas correlatas da zona sul carioca, a esquerda-modernosa e a esquerda-etílica. E é por tudo isso que me causa certo espanto ao ver não apenas Ciro e Virgínia como os grandes apresentadores do absurdo que se segue, como também dos autores de um prefácio que legitima o absurdo e comete os seus próprios.
Vamos primeiro aos absurdos do prefácio, ou da apresentação, que abre o número 18 da revista TEMPO, publicação oficial do renomado departamento de História da universidade em que estudo, a Federal Fluminense. Começo dizendo que não sei ao certo a quem imputar as colocações; a apresentação trata-se claramente de um tosco trabalho de colagem, em que salta-se de um assunto ao outro de forma súbita e sem qualquer correlação, passando-se a tema e estilo de escrita inteiramente diferentes. Não há qualquer espaço ou definição dessa passagem, então só me resta a conjectura: a primeira parte é escrita por Ciro, já que trata essencialmente de História Antiga, e a segunda, a parte dos absurdos, é da lavra de Virgínia. Se estou sendo injusto, perdoem-me: que na próxima tentativa de fazer algo a quatro mãos a TEMPO se preocupe em reunir os autores por alguns minutinhos e deixe toda a tosquice apenas para seus artigos.
Virgínia escreve sobre um artigo de historiadora americana “liberal” – aqui não se especifica de que liberalismo se fala; dada a confusão ideológica que Virgínia mostrará em seguida, concluo que é apenas uma moçoila democrata, “left-liberal” limpinha – que trata dos historiadores ligados ao Partido Comunista Britânico, como Hobsbawn e Thompson, que teriam chegado a formar realmente um “coletivo” com coesão formal. A autora teria criticado esses autores por não terem escrito explicitamente sobre suas experiências como comunistas durante os anos negros do stalinismo e da URSS como um todo. Em suma, a autora reivindica, embora talvez sem se dar conta, algo mais do que necessário: que os autores analisem – ou analisassem, no caso daqueles já falecidos – como se comportaram enquanto simpatizantes da ideologia que matou entre 80 e 100 milhões de pessoas em menos de 100 anos; o quanto colaboraram ideologicamente para esses crimes; o quanto deixaram de denunciá-los para não prejudicar a “luta do proletariado”, como fez Sartre. É algo bastante legítimo em minha opinião, e seria ótimo se transposto para nossas plagas também. Nada de Caça às Bruxas, como já bradaria um esquerdista – só quero comportamento digno de homens, aqui entendidos por seres humanos, já que mulheres também estão inclusas na coisa: que assumam o que defendiam e quando defendiam. Certamente dezenas ou centenas de reputações “democratas” cairiam por terra diante dessas revelações, e quem realmente se converteu à democracia teria o espaço para explicitá-lo. Apesar disso, Virgínia gosta do que esses historiadores fizeram, dessa recusa, dessas lacunas; louva esse comportamento em oposição ao de historiadores franceses que teriam rejeitado o marxismo em prol de um “neoconservadorismo em sua vertente francesa”, algo tão exótico quanto a “liberdade em sua vertente cubana”, mas que de fato existe, embora Virgínia tenha se esquecido de um de seus mais notórios defensores – Yves Roucault, “o falcão francês”. Qual o problema com Furet? Furet rejeitou o marxismo e a esquerda; isso basta. Não há qualquer análise crítica da obra dele; não há comentários para além daquele que identifica a posição ideológica tomada pelo autor, e isso basta para desqualificá-lo. Em oposição a ele, temos os homens que se recusaram a dizer o quanto colaboraram com o Terror; esses são heróis, e por quê? Por que não se converteram “à defesa da ‘liberdade’ e da ‘democracia’ em forma abstrata e coerente com a tradição filosófica do individualismo burguês”. Como sabemos, a esquerda, notadamente a de matriz marxista, tem, há tempos, um modelo de democracia alternativo, “concreto”, muito bem desenvolvido nos lugares em que chegou ao poder: todo cidadão tem o igual direito de ser assassinado caso diga algo que o governante e o partido não querem que seja dito. É realmente uma maravilha, e ninguém pode duvidar da concretude de uma bala sendo enfiada na sua cabeça.
Isso é ciência? Isso é relevante para a revista do departamento de História da UFF? A opinião de Virgínia Fontes sobre o silêncio dos intelectuais é alguma coisa que não proselitismo político? Não é. Eu faço proselitismo aqui também, Virgínia; não há nenhum texto acadêmico nesse blog, embora eu diga, sem falsa modéstia, que há muito mais verdades e pensamento aqui do que em inúmeros textos universitários. Mas há uma diferença fundamental entre o que faço e o que você fez: eu faço gastando o meu tempo, que não é pago por ninguém, e usando um meio que me é fornecido gratuitamente por um servidor americano, da iniciativa privada. Já no seu caso o seu tempo é pago pelo contribuinte, e a edição da revista também: o Manoel proletário é obrigado a pagar impostos extorsivos, e deixa de trabalhar em mais obras porque a classe média paga ainda mais impostos e não pode construir casas, porque é preciso financiar a revista TEMPO que ele nunca lerá. Por mim, em um futuro ideal, não existiria TEMPO nem universidades públicas; mas estamos longe desse futuro, e eu não quero que ele seja apressado; o liberalismo tem muitas coisas a fazer “nesse país” antes disso. Mas, se há TEMPO, que a revista seja séria. E essa apresentação, me desculpe, não é. E é muito menos sério o artigo que você recomenda ao término dela, de autoria do cidadão Pablo González Casanova. Vamos a ele.
Pablo González Casanova foi reitor da Universidade Nacional Autônoma do México, ou dos berços da idiotia latino-americana. Isso diz muito sobre o que ele escreve; ninguém é escolhido reitor de uma coisa dessas se não tiver méritos para isso. O artigo de Pablo chama-se “O Imperialismo hoje”, e está disponível na rede no original em espanhol. Quem tiver tempo e estômago, ou aqueles que acreditam estar lendo algo escrito por um reacionário ignorante financiado pela CIA e que o original é coisa bem diversa, que se dêem ao trabalho de lê-lo; aqui farei apenas citações dos trechos mais esdrúxulos.
O imperialismo de que trata Pablo é, como era de se esperar, o americano. Os EUA estão a dominar tudo e todos, em uma visão que é o extremo oposto da visão de uns Estados Unidos frágeis e passíveis de todo ataque estrangeiro que lemos em Nyquist e companhia. Os Estados Unidos de Pablo são onipresentes, onipotentes e, não se duvida, oniscientes; tendo orquestrado maquiavélica ação financeira que levou à estagnação das potências asiáticas, agora volta-se para a Europa com o mesmo fim – não esperem qualquer análise do profundo déficit norte-americano, financiado por europeus e asiáticos, financiamento que simplesmente impede a bancarrota americana; isso deve ser coisa de reacionário.
Claro que o outro chavão clássico do discurso esquerdista recente não poderia faltar: a ordem global que os Estados Unidos impõem ao mundo é a ordem do neoliberalismo. Já tratei disso aqui antes, e sempre volto ao mesmo tema em discussões: que neoliberalismo é esse? Onde e de que forma se apresenta? Quem são seus teóricos? Que partidos e políticos o defendem na cena internacional? Normalmente a esquerda não tem a menor condição de dar respostas; o neoliberalismo existe sem existir. É um chavão, um inimigo objetivo (100 anos de Hannah Arendt, viva!) contra o qual se atira a culpa por todos os males que afligem nosso mundo. Muito embora não seja capaz de citar um político brasileiro que defenda a teoria, um partido internacional que tenha o neoliberalismo como bandeira, muito embora o termo praticamente inexista na discussão e no cenário político-cultural americano, ele está por toda parte. É como a roupa do rei, que apenas os ignorantes não conseguem ver. Pablo vê, Virgínia também. Eu, o colega do Christian Science Monitor, os libertários do Lew Rockwell e do Mises Institute ainda enxergamos a enorme barriga do Rei-Estado; acredito firmemente que estou em melhor companhia. Pablo vê até um “neoliberalismo de guerra” , como se fosse possível fazer guerra com um Estado Mínimo, como se o financiamento da enorme máquina bélica americana fosse aprovado por teóricos neoliberais. Para quem vê liberdade em Cuba, como veremos, o neoliberalismo pode realmente ser extremamente belicoso.
Temos também os esquerdismos menos pretensiosos e mais recentes, mas já clássicos: a eleição presidencial americana “fraudada”; a “lógica totalitária” vigente nos Estados Unidos, o “Tratado de Kyoto” – e aqui a coisa merece ser descrita em sua totalidade: “Os Estados Unidos (...) fizeram gestos simbólicos e prepotentes que confirmaram seu caráter de ‘Soberano’ que pode estar acima(...) dos acordos de Kyoto para não assinar um compromisso que os obrigasse a tomar as medidas necessárias para a preservação da Terra”. Que quer dizer Pablo? Que uma nação se recusar a assinar um tratado internacional é ato de “prepotência”? Que uma nação não mais pode legislar sobre as emissões de poluição das suas empresas sem ser “prepotente”? Realmente essas declarações nos fazem temer o tal “governo mundial” que certa esquerda insiste em impor através de uma de suas últimas trincheiras, a ONU.
Os EUA também são terroristas, claro; não há, para Pablo, diferença alguma entre entrar em um ônibus com o intuito de explodir seus passageiros e lançar bombas visando alvos militares ou paramilitares e ter baixas civis. Também são sádicos, desumanos, impiedosos: “(...) violência quanto a que exerceram sobre a população do Iraque com o argumento de que seu verdadeiro objetivo era aprisionar Saddam Hussein, enquanto, para tanto, destruíam o país, cidade por cidade e casa por casa, e se apoderavam de seus ricos poços de petróleo”. Entenderam o que entendi? Os EUA mentiram; o objetivo de prender Saddam Hussein era farsa; queriam mesmo era destruir casa por casa, cidade por cidade, como um menino brincando de demolição com lego. Seria alguma maligna conspiração com as empreiteiras americanas? Será que a “resistência” iraquiana, aliás tão defendida por certa esquerda, está participando do plano também? Afinal, se não fosse por ela, essa destruição de casas e cidades já teria parado há tempo mais que significativo.
Mas a população do mundo marchou contra a guerra, Felipe! Quem é você para ir contra a população do mundo?? A visão que a esquerda tem de povo é muito interessante: em dado momento, o povo é sapiente, as massas estão corretas, saem às ruas e sua voz é a lei; em outro, são ignorantes manipulados pelo império. Mas o amigo Roberto Cajaraville, que teve a infelicidade de comprar essa TEMPO e também leu o artigo, lembrou bem: enquanto a esquerda marchava contra a guerra, pesquisas as mais diversas indicavam que os iraquianos apoiavam a intervenção americana –e, meses depois, iam felizes participar da primeira eleição mais ou menos livre em décadas, isso aqueles que não eram explodidos pela “resistência” que nossa esquerda tanto louva.
Restam-me dois absurdos dignos de nota: o primeiro flerta com o anti-semitismo, o outro é o absurdo-padrão, já indicado ao longo desse texto. “(...) imposição paulatina e constante de um regime de ‘nazismo-cibernético’(?), com a eliminação de povos inteiros pelo mundo afora, à maneira de Pol-Pot, ou do equivalente a sete milhões de judeus vitimados pelo nazismo anterior, que agora desponta no campo de concentração e eliminação em que o imperialismo e seus associados converteram a Palestina”. Ora, quem me lê e, mais ainda, quem me conhece, sabe que estou longe de ser “a pround friend of Israel”, como é certa direita; não penso que palestinos são a mesma coisa que terroristas e digo explicitamente que a criação de Israel foi um enorme erro geopolítico; também não me apraz um Estado que não é laico e no qual eu não poderia comer meus presuntos em paz por isso. Mas daí a comparar os campos de concentração nazistas com a Palestina vai uma distância que é a mesma entre a sanidade e a loucura. Esse é talvez o maior horror do texto, e a coisa que mais deveria envergonhar Virgínia, Ciro e todos aqueles que colaboraram direta e indiretamente com a publicação dessa peça de proselitismo político baixíssima.
Mas há o final apoteótico, que faz o esquerdista estúpido erguer o punho cerrado: “(...) o exemplo de Cuba, longe de ser ‘excepcional’, tem características universais que se tornarão cada vez mais evidentes conforme se descubra nela a necessidade ético-política que todo movimento pela libertação, pela democracia e pelo socialismo deve priorizar na organização de seu pensamento e de suas ações”. Volto ao amigo Roberto e termino com o comentário que ele fez em seu exemplar da triste revista, e que é a única consideração possível: putz.
Felipe Svaluto Paúl(a tapas e pontapés)

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