sexta-feira, maio 12, 2006
V DE LIBERDADE
Há um fenômeno interessante nas plagas brasílicas: o surgimento de direitistas por todos os lados. Uns confessos, outros ocultos – in the closet, como diriam os moderninhos – e ainda aqueles que preferem ocupar a sempre simpática e vaga definição de livre-pensadores. O fenômeno em si não é ruim, muito pelo contrário; eu gostaria que aparecessem direitistas na proporção em que aparecem as imoralidades do governo Molusco. Mas seria leviano não considerar algumas características bastante negativas dessa renascença, negativas não apenas para a refundação de uma direita brasileira digna do nome como também para o próprio futuro da liberdade no país.
Quanto ao primeiro aspecto, lembro que essa renascença está longe de representar o renascimento de um pensamento sério, coerente e bem fundamentado; isso é esforço para poucos e nem sempre bons. O grosso dos direitistas que surgem, de certa forma, parecem responder ao meu desejo já expresso: são essencialmente figuras reacionárias, tomando aqui a palavra na sua mais direta e apolítica acepção: são nada mais nada menos do que uma reação imediata e pouco refletida aos tempos lulistas. Sim, senhores: só não vê isso quem não quer. O famigerado orkut tem defeitos incontáveis, mas vem se tornando a cada dia, como não poderia deixar de ser, um ambiente privilegiado para análises de uma parcela importante e ampla da nossa sociedade. E, a se considerar o orkut, a revolução liberal, como Aníbal, está às portas e ameaça a cidadela. Liberais pululam: escrevem em miguxês, trocam esses por zês, defendem a privatização imediata da saúde pública brasileira. Inevitável? Sempre haverá uma massa, como diria um bom leninista, a ser meramente reprodutora infantil de um discurso produzido por pequena elite? É melhor isso do que nada? Pode ser, pode ser: realmente me incluo entre aqueles que acreditam firmemente que a história é e sempre será uma história das elites – e só o esquerdista mais tosco não compreende o que realmente quero dizer com isso. A aristocracia natural de que falava Jefferson – o Thomas – definitivamente não era aquela que surgiu mais adiante nas sandices racistas dos oitocentos; era uma legítima diferença fundada no mérito, que parecia existir em todos os povos e deveria tornar a meritocracia um elemento fundamental de qualquer governo que se pretendesse livre; a “aristocracia do mérito” substituiria a “aristocracia dos títulos”. Como negar isso? Não conheço sequer um marxista sério que, confrontado com o problema – a existência, historicamente evidente, de diferenciações intelectuais profundas entre seres humanos – não recorresse a argumentos biológicos para explicá-la (biológicos, não racistas, pois falo de marxismo e não de Marx) ou acabasse por confessar a ignorância que por ora confesso quanto ao tema. Se é assim – e assumo que é – não seria natural que a coisa ocorresse também com a ressurgência de uma direita legítima, confessa e ideológica no Brasil? Sim, acho que seria – o que não deve em momento algum nos eximir da necessidade de “educar as massas”, por mais politicamente correto e arrogante que isso pareça, ou até por isso. E é aí que chego no bem mais perigoso aspecto da problemática que discuto: muito mais danoso que um estudante universitário que se considere direitista pois a greve do PSTU o impede de ir à praia no verão é o jornalista, formado, letrado e renomado que parece simplesmente não compreender que nos leva ao totalitarismo quando crê estar defendendo a liberdade.
Antes de passar ao jornalista em questão, apresento rapidamente o problema, que já discuti em outras oportunidades: há uma profunda confusão de referências intelectuais em parte dessa direita nativa. Personagem comum à direita virtual é o direitista que pretende ser algo mais do que seu correligionário de fim-de-semana descrito acima, sem que para isso tenha que se devotar a livros quaisquer. Iludido pela internet – que parece cada vez mais, pelo menos para certas pessoas, já ter abarcado todo o conhecimento da história humana – acha que pode compreender profundamente temas que vão de liberalismo e socialismo até política norte-americana, passando por ditadura brasileira e pesquisas com células-tronco, apenas com alguns cliques de mouse em busca das páginas “certas”, no que seria já uma espécie de cânone da vida virtual direitista – no qual o MSM ocupa não por acaso privilegiada posição. Surgem então toda sorte de frankensteins ideológicos, com a diferença de que seus criadores preferem virar o rosto para o outro lado e não assumir culpa alguma pelo que produziram. Há quem misture liberalismo, TFP e integralismo; quem justifique uma oposição à união civil homossexual lembrando que Adam Smith e os Pais Fundadores americanos nunca aprovariam a coisa; quem considere legítima a expulsão de Mulás que preguem o terrorismo na Europa e crie comunidades em homenagem a quem defende a guerra total e a conversão forçada do mundo islâmico ao cristianismo; há quem esteja lendo isso e não veja contradição alguma entre essas coisas; há quem esteja lendo isso e resmungando sobre o quão “inocente útil” eu sou; há mesmo quem já esteja me considerando comunista pelas afirmações feitas – e, por conseguinte, alguém que não merece o direito à liberdade de expressão, como já defendeu explicitamente o senhor Victor Grinbaum, como lembrei no artigo abaixo. Quem se diga liberal e defenda que um historiador, por ter negado o Holocausto, saia algemado de um tribunal. Confusão entre liberalismo e conservadorismo, decorrente de entendimentos precários e simplistas de ambos; confusão entre liberalismos e conservadorimos, incapazes que são de perceber as profundas diferenças internas às ideologias ao longo de séculos de desenvolvimento; confusão entre liberalismo e fascismo, sempre prontos que estão a ceder liberdades – principalmente as alheias – em nome de alguma luta épica para preservação dessas mesmas liberdades, reconfigurando espetacularmente o sentido do “liberdade é escravidão” orwelliano; reflexo também da ignorância do direitista de fim-de-semana, mas com o diferencial que se pretende imensa – ou mesmo a única – sabedoria, a própria chave para a compreensão do universo; não por acaso flertam tão facilmente com totalitarismos, reprodutores que são de visões totalizantes de mundo muito menos distintas do marxismo que repugnam. E esse o grande perigo: o fascismo travestido de liberdade máxima, que é capaz de conquistar, sem dúvida, pessoas mil para as fileiras da causa – mas não da causa do liberalismo, e sim de uma outra e muito perigosa força.
E é assim que chego, enfim, ao filme. Sim, senhores, falarei do V de Vingança, ou melhor, falarei de uma crítica ao V – o filme aqui é assunto lateral, e não seria comentado se eu não tivesse lido a crítica; aparece e será citado como contraponto ao verdadeiro alvo, a crítica que expressa de certa forma esse liberalismo fascista que descrevi rapidamente acima – e não, o termo não é forte demais, mesmo porque não pressupõe em nenhum momento (muito pelo contrário, até) que o liberal-fascista se reconheça como o frankenstein desajeitado e horrendo que é. No mais das vezes é exatamente ele, como já lembrei, o inocente útil, que trabalha para o fim das liberdades acreditando lutar tenazmente para preservá-las. Há muitos da espécie, mas no caso falarei de Michel Laub, ou melhor, da crítica que ele escreveu sobre o V na Primeira Leitura desse mês, na seção de críticas cinematográficas que até mês passado faltava a essa excelente revista.
Laub faz uma análise interessante em certos momentos do texto, é inegável, mas não quando trata do filme. Quando foge do tema central da crônica – ou melhor, quando parece eleger outro o tema central, trabalhando com uma estrutura para voltar-se poucas vezes a um exemplo dela, como eu mesmo faço agora e canso de fazer por aqui – Laub nos lembra aspecto interessante, ainda que óbvio, de certo discurso esquerdista: a incapacidade de perceber que Hollywood é, há muito, a principal produtora de críticas ao sistema norte-americano. Seria absurdo falar de sistema liberal americano, armadilha de esquerda na qual muitos dos tais direitistas caem com prazer enorme; mas vá lá, reconheço: Hollywood é a principal crítica ao sistema de um dos países mais livres do mundo hoje, se não o mais livre, a despeito do que tem feito certos correlatos ianques dos nossos liberais-fascistas. São produzidos anualmente toda sorte de filmes hollywoodianos em que esse sistema é posto abaixo das mais diferentes formas, revelando um povo profundamente amoral, mesquinho, carente de valor qualquer que não o materialismo mais imediato – sim, a direita religiosa tão citada em outros meios praticamente desaparece aqui – e sempre disposto a qualquer sordidez, do desfalque na firma a alguma guerrinha para júbilo das empresas armamentistas que financiam o presidente. A despeito da minha crença de que o povo americano possa ser assim mesmo – derivada da crença não menos otimista e quase cristã de que todo povo é hoje, se é que não foi sempre, pecador antes de qualquer coisa – é inegável que as colinas da Califórnia voltam muito mais as suas baterias contra seu próprio território – ou, melhor dizendo, contra os yuppies capitalistas selvagens da Costa oposta – do que contra povos e governos que estão longe, aí sim, de terem características positivas que eu mesmo reputo ao povo e ao sistema norte-americano. A despeito do caráter profundamente periférico de alguns desses povos – como o nosso – para uma cultura que sempre teve altas doses de provincianismo convivendo com altas doses de universalismo, é inegável o viés político dessa escolha, e um esquerdista que não o perceba precisa ir muito mais ao cinema ou ler muito menos Carta Capital. Até aí, Laub acerta; começa a complicar quando decide falar do filme.
Laub começa acertando, e é estranho que o acerto inicial tenha gerado conclusões tão esquisitas a ele: o elemento fundamental do filme é citado por Laub, embora não identificado dessa forma. É o “ditador que tem interesse em infligir medo à população”. E bem sabe Laub – ao contrário de esquerdista com o qual discuti recentemente a idéia de ditadura do proletariado – que não existe ditador sem ditadura ou ditadura sem ditador, seja esse uma pessoa apenas ou, com a alteração da definição que a modernidade consagrou e é expressa no conceito marxista, um grupo. Logo, conclui-se que o mundo de V é uma ditadura. E não duvido que Laub seja tão contrário a ditaduras quanto eu; e é por isso que o termo “terrorista” que ele aplica ao personagem “V” já é complicado. Remete-me a intensa discussão havida após o 11 de setembro sobre os conceitos de “insurgente” e “terrorista”; uma esquerda igualmente tola e covarde – pois isso é coisa que só a covardia das costas-quentes pode permitir dizer, embora se arvorassem a coragem de criticar os EUA, como se isso não fosse já, muitas vezes, a própria banalidade do Mal, vista em qualquer esquina – se permitiu considerar os terroristas como “insurgentes”, como se fossem judeus do gueto de Varsóvia em um levante contra o opressor nazista. Está e sempre esteve claro para mim – como também para Laub, imagino – que os insanos asseclas de Bin Laden eram apenas terroristas mesmo, e da pior espécie. Mas a essa conclusão só se pode chegar quando se determina alguns marcos que nos permitem qualificar o “insurgente”, e o principal deles – o mínimo necessário, mas não o único necessário – é que o insurgente combate uma ditadura, é alguém que apela à rebelião justificada lockeana contra um poder que lhe restringiu ou eliminou os direitos fundamentais. É claro que diferentes grupos e pessoas podem conceber “ditaduras” distintas, e é igualmente claro que alguém sempre poderia justificar o terrorismo tomando-o como insurgência contra uma certa “ditadura do capital” ou algo assim; mas toscos e malignos sempre existirão, e não é por eles que deixaremos de definir quando a rebelião armada contra o Estado é moralmente permitida, conceito fundamental a qualquer perspectiva liberal que se preze. Pois o que faz o V, leitores? Rebelião armada contra um Estado que parece estar no caminho entre o autoritarismo e o totalitarismo, como o filme evidencia – Estado que o próprio Laub definiu, como já vimos, como uma ditadura. Isso por si só desmonta o argumento de Laub e afirma o meu: V estava certo, é um insurgente e não um terrorista. Mas ainda é preciso dizer mais algumas coisas.
É preciso dizer ainda que as vítimas das bombas do terrorista, para as quais Laub reclama ao menos uma cena, são poucas. O parlamento explodido estava isolado pelo exército, em hora morta, donde conclui-se que ninguém morreu na explosão. V mata guardas, sim, é inegável – assim como mata agentes da ditadura; criticar isso seria como criticar o soldado americano que matou o soldado alemão na segunda guerra (que poderia ser tão nazista quanto o soldado de V poderia ser um simpático daquela ditadura) ou os oficiais alemães que tentaram assassinar Adolf Hitler em complô infelizmente frustrado, ou um cubano que saísse a matar agentes da polícia secreta do regime ou o próprio Fidel. Sim, Laub, aqui é preciso que o senhor mesmo abandone o politicamente correto que tanto acusa e compreenda o seguinte: para uma perspectiva liberal, hoje, Fidel é um alvo moralmente legítimo para qualquer cidadão cubano ou, em instância maior, para qualquer cidadão do mundo. Uma insurreição que rebentasse hoje em Cuba – e que não fosse, óbvio, para instaurar outro totalitarismo na ilha – deveria ser saudada e apoiada por todos os cidadãos livres do mundo, o que não implica desconsiderar as vítimas circunstanciais e inocentes que a sublevação necessariamente traria. Claro, é preciso sempre esgotar as possibilidades, mas elas já não estão esgotadas em Cuba? O cubano deve se contentar com os cartões de ração – como você parece querer que os cidadãos da Inglaterra de V se contentassem – e com a mais intensa falta de liberdades à espera, quem sabe, de uma morte de Fidel, que provavelmente nem porá fim ao tormento? Não é assim que eu penso, não era assim que pensava Locke, não é assim que pensa o liberalismo: a rebelião armada contra Fidel se justifica, explosões de prédios mil inclusas, assim como se justifica a rebelião no V de Vingança.
Sim, leitores, os senhores leram certo ali acima: Laub acha que os cidadãos da Inglaterra de V deveriam se contentar com o que ele chama de “distribuição desigual de laticínios”. Sim, leitores, os senhores estão imaginando certo agora, e entendendo o raciocínio torto de Laub: para ele o filme é uma crítica ao...capitalismo! A divisão desigual de laticínios aludida pelo cidadão é o fato de alguns, na Inglaterra, comerem manteiga e outros não. Diz assim: “É um pouco ocioso discorrer sobre o grau de ignorância do argumento. Há um momento em que a heroína, vivida por Natalie Portman, diz que não come manteiga desde criança em virtude de um racionamento de guerra ou coisa do gênero. O terrorista que a faz refém conta que roubou alguns pacotes do ‘ suprimento especial do primeiro-ministro’. A maturidade e o senso de justiça de V podem ser resumidos nessa cena de aparência inofensiva: como conseqüência da cruel distribuição de laticínios, bombardeia-se o Parlamento...”. Pois é, senhores, Laub não entendeu nada. Não se explode o Parlamento, Laub, por não ter a simpática Natalie Portman manteiga para comer, embora eu particularmente a ache, apesar de bonitinha, algo necessitada de um pouco mais de laticínios; a falta de laticínios é um elemento, um microcosmo, de um regime totalitário. O “suprimento especial do primeiro-ministro” não é uma geladeira abarrotada de manteiga comprada em um mercado livre; é um alimento negado à maioria da população e usufruido apenas por uma elite política privilegiada, igualzinho ao sistema de racionamento da Cuba de Fidel. E o homem que tem o Alcorão em casa por fins meramente culturais, Laub, é assassinado por sistema não menos intolerante do que aqueles que hoje grassam em países islâmicos –sistemas que o senhor fez questão de lembrar durante todo o artigo – apenas por satirizar o ditador em programa televisivo.
E é aqui que chegamos ao último aspecto do pensamento do Laub: tudo para ele parece histeria, mau-caratismo e maldade do filme diante do Ocidente; dedica-se por duas vezes no artigo a lembrar a situação terrível em que vivem os países muçulmanos – como se o leitor de Primeira Leitura não soubesse disso – com fim algo difícil de ser compreendido: o faz pela primeira vez no caso do Alcorão, quando considera a cena – a meu ver, acertadamente – como uma crítica velada a uma intolerância crescente da guerra ao terror. Na segunda apenas lembra que o filme não poderia ser filmado em um oriente intolerante, que obviamente não aceitaria as críticas feitas. Pois é, Laub, obviamente: o leitor da Primeira Leitura também sabe disso. Para que servem as comparações, então? Pouca coisa. Diz Laub que críticas e preocupações sobre a ação americana em relação às liberdades são justas, mas o que o filme faz é sórdido e covarde, moralmente equivalente a um Michael Moore. Ora, Laub, a proibição do Alcorão é algo tão distante assim? Revelo a autora de passagem já citada no texto, bem acima, sobre os países islâmicos: é Ann Coulter, polemista conservadora absolutamente popular nos EUA – e entre a nossa direita de liberais-fascistas – quem disse: “devemos invadir seus países, matar seus líderes e convertê-los ao cristianismo”, referindo-se aos países islâmicos. Vende milhões e milhões de livros nos EUA, Laub; é o Michael Moore da direita. Escrevo o artigo num dia em que se noticia o fato de que agência de segurança americana – a NSA – sabe os números discados por milhares de americanos, em uma operação não revelada ao público americano e que teria permanecido oculta se não fosse a matéria investigativa de um tablóide. E isso dias depois de ler artigo do conservador britânico Paul Hitchens no qual é descrita a orwelliana – kafkiana? – história de um comerciante inglês condenado por não vender suas mercadorias em quilogramas, preferindo as unidades tradicionais de medida inglesas – esse aqui vítima não dos liberais-fascistas, mas dos tecnocratas da União Européia, o que só faz mudar o projeto totalitário. O filme poderia até ser descrito como alarmista por alguém que desconhecesse esses dados, Laub, e tantos outros embutidos em Atos Patrióticos explicítos ou implícitos, que vêm surgindo por todo o mundo livre. Mas atribuir a ele “sordidez” e “covardia” é não ter absolutamente a menor noção do perigo que estamos evidentemente correndo.
Enfim, são 9 páginas de Word, senhores. Mais do que suficiente; quem quiser compre a revista – que eu sempre recomendo, aliás; seria até melhor se a assinassem logo – e terá melhor dimensão do samba do liberal-doido que fez o senhor Laub, como fazem direitistas mil internet afora. E entendam um pouco a dimensão do perigo que estamos correndo: é possível que nossos filhos venham a viver na primeira ditadura liberal da História, na qual certamente não se exibirá V de Vingança no Supercine.
Felipe Svaluto Paúl (Pronto para explodir o Palácio de Havana)
Quanto ao primeiro aspecto, lembro que essa renascença está longe de representar o renascimento de um pensamento sério, coerente e bem fundamentado; isso é esforço para poucos e nem sempre bons. O grosso dos direitistas que surgem, de certa forma, parecem responder ao meu desejo já expresso: são essencialmente figuras reacionárias, tomando aqui a palavra na sua mais direta e apolítica acepção: são nada mais nada menos do que uma reação imediata e pouco refletida aos tempos lulistas. Sim, senhores: só não vê isso quem não quer. O famigerado orkut tem defeitos incontáveis, mas vem se tornando a cada dia, como não poderia deixar de ser, um ambiente privilegiado para análises de uma parcela importante e ampla da nossa sociedade. E, a se considerar o orkut, a revolução liberal, como Aníbal, está às portas e ameaça a cidadela. Liberais pululam: escrevem em miguxês, trocam esses por zês, defendem a privatização imediata da saúde pública brasileira. Inevitável? Sempre haverá uma massa, como diria um bom leninista, a ser meramente reprodutora infantil de um discurso produzido por pequena elite? É melhor isso do que nada? Pode ser, pode ser: realmente me incluo entre aqueles que acreditam firmemente que a história é e sempre será uma história das elites – e só o esquerdista mais tosco não compreende o que realmente quero dizer com isso. A aristocracia natural de que falava Jefferson – o Thomas – definitivamente não era aquela que surgiu mais adiante nas sandices racistas dos oitocentos; era uma legítima diferença fundada no mérito, que parecia existir em todos os povos e deveria tornar a meritocracia um elemento fundamental de qualquer governo que se pretendesse livre; a “aristocracia do mérito” substituiria a “aristocracia dos títulos”. Como negar isso? Não conheço sequer um marxista sério que, confrontado com o problema – a existência, historicamente evidente, de diferenciações intelectuais profundas entre seres humanos – não recorresse a argumentos biológicos para explicá-la (biológicos, não racistas, pois falo de marxismo e não de Marx) ou acabasse por confessar a ignorância que por ora confesso quanto ao tema. Se é assim – e assumo que é – não seria natural que a coisa ocorresse também com a ressurgência de uma direita legítima, confessa e ideológica no Brasil? Sim, acho que seria – o que não deve em momento algum nos eximir da necessidade de “educar as massas”, por mais politicamente correto e arrogante que isso pareça, ou até por isso. E é aí que chego no bem mais perigoso aspecto da problemática que discuto: muito mais danoso que um estudante universitário que se considere direitista pois a greve do PSTU o impede de ir à praia no verão é o jornalista, formado, letrado e renomado que parece simplesmente não compreender que nos leva ao totalitarismo quando crê estar defendendo a liberdade.
Antes de passar ao jornalista em questão, apresento rapidamente o problema, que já discuti em outras oportunidades: há uma profunda confusão de referências intelectuais em parte dessa direita nativa. Personagem comum à direita virtual é o direitista que pretende ser algo mais do que seu correligionário de fim-de-semana descrito acima, sem que para isso tenha que se devotar a livros quaisquer. Iludido pela internet – que parece cada vez mais, pelo menos para certas pessoas, já ter abarcado todo o conhecimento da história humana – acha que pode compreender profundamente temas que vão de liberalismo e socialismo até política norte-americana, passando por ditadura brasileira e pesquisas com células-tronco, apenas com alguns cliques de mouse em busca das páginas “certas”, no que seria já uma espécie de cânone da vida virtual direitista – no qual o MSM ocupa não por acaso privilegiada posição. Surgem então toda sorte de frankensteins ideológicos, com a diferença de que seus criadores preferem virar o rosto para o outro lado e não assumir culpa alguma pelo que produziram. Há quem misture liberalismo, TFP e integralismo; quem justifique uma oposição à união civil homossexual lembrando que Adam Smith e os Pais Fundadores americanos nunca aprovariam a coisa; quem considere legítima a expulsão de Mulás que preguem o terrorismo na Europa e crie comunidades em homenagem a quem defende a guerra total e a conversão forçada do mundo islâmico ao cristianismo; há quem esteja lendo isso e não veja contradição alguma entre essas coisas; há quem esteja lendo isso e resmungando sobre o quão “inocente útil” eu sou; há mesmo quem já esteja me considerando comunista pelas afirmações feitas – e, por conseguinte, alguém que não merece o direito à liberdade de expressão, como já defendeu explicitamente o senhor Victor Grinbaum, como lembrei no artigo abaixo. Quem se diga liberal e defenda que um historiador, por ter negado o Holocausto, saia algemado de um tribunal. Confusão entre liberalismo e conservadorismo, decorrente de entendimentos precários e simplistas de ambos; confusão entre liberalismos e conservadorimos, incapazes que são de perceber as profundas diferenças internas às ideologias ao longo de séculos de desenvolvimento; confusão entre liberalismo e fascismo, sempre prontos que estão a ceder liberdades – principalmente as alheias – em nome de alguma luta épica para preservação dessas mesmas liberdades, reconfigurando espetacularmente o sentido do “liberdade é escravidão” orwelliano; reflexo também da ignorância do direitista de fim-de-semana, mas com o diferencial que se pretende imensa – ou mesmo a única – sabedoria, a própria chave para a compreensão do universo; não por acaso flertam tão facilmente com totalitarismos, reprodutores que são de visões totalizantes de mundo muito menos distintas do marxismo que repugnam. E esse o grande perigo: o fascismo travestido de liberdade máxima, que é capaz de conquistar, sem dúvida, pessoas mil para as fileiras da causa – mas não da causa do liberalismo, e sim de uma outra e muito perigosa força.
E é assim que chego, enfim, ao filme. Sim, senhores, falarei do V de Vingança, ou melhor, falarei de uma crítica ao V – o filme aqui é assunto lateral, e não seria comentado se eu não tivesse lido a crítica; aparece e será citado como contraponto ao verdadeiro alvo, a crítica que expressa de certa forma esse liberalismo fascista que descrevi rapidamente acima – e não, o termo não é forte demais, mesmo porque não pressupõe em nenhum momento (muito pelo contrário, até) que o liberal-fascista se reconheça como o frankenstein desajeitado e horrendo que é. No mais das vezes é exatamente ele, como já lembrei, o inocente útil, que trabalha para o fim das liberdades acreditando lutar tenazmente para preservá-las. Há muitos da espécie, mas no caso falarei de Michel Laub, ou melhor, da crítica que ele escreveu sobre o V na Primeira Leitura desse mês, na seção de críticas cinematográficas que até mês passado faltava a essa excelente revista.
Laub faz uma análise interessante em certos momentos do texto, é inegável, mas não quando trata do filme. Quando foge do tema central da crônica – ou melhor, quando parece eleger outro o tema central, trabalhando com uma estrutura para voltar-se poucas vezes a um exemplo dela, como eu mesmo faço agora e canso de fazer por aqui – Laub nos lembra aspecto interessante, ainda que óbvio, de certo discurso esquerdista: a incapacidade de perceber que Hollywood é, há muito, a principal produtora de críticas ao sistema norte-americano. Seria absurdo falar de sistema liberal americano, armadilha de esquerda na qual muitos dos tais direitistas caem com prazer enorme; mas vá lá, reconheço: Hollywood é a principal crítica ao sistema de um dos países mais livres do mundo hoje, se não o mais livre, a despeito do que tem feito certos correlatos ianques dos nossos liberais-fascistas. São produzidos anualmente toda sorte de filmes hollywoodianos em que esse sistema é posto abaixo das mais diferentes formas, revelando um povo profundamente amoral, mesquinho, carente de valor qualquer que não o materialismo mais imediato – sim, a direita religiosa tão citada em outros meios praticamente desaparece aqui – e sempre disposto a qualquer sordidez, do desfalque na firma a alguma guerrinha para júbilo das empresas armamentistas que financiam o presidente. A despeito da minha crença de que o povo americano possa ser assim mesmo – derivada da crença não menos otimista e quase cristã de que todo povo é hoje, se é que não foi sempre, pecador antes de qualquer coisa – é inegável que as colinas da Califórnia voltam muito mais as suas baterias contra seu próprio território – ou, melhor dizendo, contra os yuppies capitalistas selvagens da Costa oposta – do que contra povos e governos que estão longe, aí sim, de terem características positivas que eu mesmo reputo ao povo e ao sistema norte-americano. A despeito do caráter profundamente periférico de alguns desses povos – como o nosso – para uma cultura que sempre teve altas doses de provincianismo convivendo com altas doses de universalismo, é inegável o viés político dessa escolha, e um esquerdista que não o perceba precisa ir muito mais ao cinema ou ler muito menos Carta Capital. Até aí, Laub acerta; começa a complicar quando decide falar do filme.
Laub começa acertando, e é estranho que o acerto inicial tenha gerado conclusões tão esquisitas a ele: o elemento fundamental do filme é citado por Laub, embora não identificado dessa forma. É o “ditador que tem interesse em infligir medo à população”. E bem sabe Laub – ao contrário de esquerdista com o qual discuti recentemente a idéia de ditadura do proletariado – que não existe ditador sem ditadura ou ditadura sem ditador, seja esse uma pessoa apenas ou, com a alteração da definição que a modernidade consagrou e é expressa no conceito marxista, um grupo. Logo, conclui-se que o mundo de V é uma ditadura. E não duvido que Laub seja tão contrário a ditaduras quanto eu; e é por isso que o termo “terrorista” que ele aplica ao personagem “V” já é complicado. Remete-me a intensa discussão havida após o 11 de setembro sobre os conceitos de “insurgente” e “terrorista”; uma esquerda igualmente tola e covarde – pois isso é coisa que só a covardia das costas-quentes pode permitir dizer, embora se arvorassem a coragem de criticar os EUA, como se isso não fosse já, muitas vezes, a própria banalidade do Mal, vista em qualquer esquina – se permitiu considerar os terroristas como “insurgentes”, como se fossem judeus do gueto de Varsóvia em um levante contra o opressor nazista. Está e sempre esteve claro para mim – como também para Laub, imagino – que os insanos asseclas de Bin Laden eram apenas terroristas mesmo, e da pior espécie. Mas a essa conclusão só se pode chegar quando se determina alguns marcos que nos permitem qualificar o “insurgente”, e o principal deles – o mínimo necessário, mas não o único necessário – é que o insurgente combate uma ditadura, é alguém que apela à rebelião justificada lockeana contra um poder que lhe restringiu ou eliminou os direitos fundamentais. É claro que diferentes grupos e pessoas podem conceber “ditaduras” distintas, e é igualmente claro que alguém sempre poderia justificar o terrorismo tomando-o como insurgência contra uma certa “ditadura do capital” ou algo assim; mas toscos e malignos sempre existirão, e não é por eles que deixaremos de definir quando a rebelião armada contra o Estado é moralmente permitida, conceito fundamental a qualquer perspectiva liberal que se preze. Pois o que faz o V, leitores? Rebelião armada contra um Estado que parece estar no caminho entre o autoritarismo e o totalitarismo, como o filme evidencia – Estado que o próprio Laub definiu, como já vimos, como uma ditadura. Isso por si só desmonta o argumento de Laub e afirma o meu: V estava certo, é um insurgente e não um terrorista. Mas ainda é preciso dizer mais algumas coisas.
É preciso dizer ainda que as vítimas das bombas do terrorista, para as quais Laub reclama ao menos uma cena, são poucas. O parlamento explodido estava isolado pelo exército, em hora morta, donde conclui-se que ninguém morreu na explosão. V mata guardas, sim, é inegável – assim como mata agentes da ditadura; criticar isso seria como criticar o soldado americano que matou o soldado alemão na segunda guerra (que poderia ser tão nazista quanto o soldado de V poderia ser um simpático daquela ditadura) ou os oficiais alemães que tentaram assassinar Adolf Hitler em complô infelizmente frustrado, ou um cubano que saísse a matar agentes da polícia secreta do regime ou o próprio Fidel. Sim, Laub, aqui é preciso que o senhor mesmo abandone o politicamente correto que tanto acusa e compreenda o seguinte: para uma perspectiva liberal, hoje, Fidel é um alvo moralmente legítimo para qualquer cidadão cubano ou, em instância maior, para qualquer cidadão do mundo. Uma insurreição que rebentasse hoje em Cuba – e que não fosse, óbvio, para instaurar outro totalitarismo na ilha – deveria ser saudada e apoiada por todos os cidadãos livres do mundo, o que não implica desconsiderar as vítimas circunstanciais e inocentes que a sublevação necessariamente traria. Claro, é preciso sempre esgotar as possibilidades, mas elas já não estão esgotadas em Cuba? O cubano deve se contentar com os cartões de ração – como você parece querer que os cidadãos da Inglaterra de V se contentassem – e com a mais intensa falta de liberdades à espera, quem sabe, de uma morte de Fidel, que provavelmente nem porá fim ao tormento? Não é assim que eu penso, não era assim que pensava Locke, não é assim que pensa o liberalismo: a rebelião armada contra Fidel se justifica, explosões de prédios mil inclusas, assim como se justifica a rebelião no V de Vingança.
Sim, leitores, os senhores leram certo ali acima: Laub acha que os cidadãos da Inglaterra de V deveriam se contentar com o que ele chama de “distribuição desigual de laticínios”. Sim, leitores, os senhores estão imaginando certo agora, e entendendo o raciocínio torto de Laub: para ele o filme é uma crítica ao...capitalismo! A divisão desigual de laticínios aludida pelo cidadão é o fato de alguns, na Inglaterra, comerem manteiga e outros não. Diz assim: “É um pouco ocioso discorrer sobre o grau de ignorância do argumento. Há um momento em que a heroína, vivida por Natalie Portman, diz que não come manteiga desde criança em virtude de um racionamento de guerra ou coisa do gênero. O terrorista que a faz refém conta que roubou alguns pacotes do ‘ suprimento especial do primeiro-ministro’. A maturidade e o senso de justiça de V podem ser resumidos nessa cena de aparência inofensiva: como conseqüência da cruel distribuição de laticínios, bombardeia-se o Parlamento...”. Pois é, senhores, Laub não entendeu nada. Não se explode o Parlamento, Laub, por não ter a simpática Natalie Portman manteiga para comer, embora eu particularmente a ache, apesar de bonitinha, algo necessitada de um pouco mais de laticínios; a falta de laticínios é um elemento, um microcosmo, de um regime totalitário. O “suprimento especial do primeiro-ministro” não é uma geladeira abarrotada de manteiga comprada em um mercado livre; é um alimento negado à maioria da população e usufruido apenas por uma elite política privilegiada, igualzinho ao sistema de racionamento da Cuba de Fidel. E o homem que tem o Alcorão em casa por fins meramente culturais, Laub, é assassinado por sistema não menos intolerante do que aqueles que hoje grassam em países islâmicos –sistemas que o senhor fez questão de lembrar durante todo o artigo – apenas por satirizar o ditador em programa televisivo.
E é aqui que chegamos ao último aspecto do pensamento do Laub: tudo para ele parece histeria, mau-caratismo e maldade do filme diante do Ocidente; dedica-se por duas vezes no artigo a lembrar a situação terrível em que vivem os países muçulmanos – como se o leitor de Primeira Leitura não soubesse disso – com fim algo difícil de ser compreendido: o faz pela primeira vez no caso do Alcorão, quando considera a cena – a meu ver, acertadamente – como uma crítica velada a uma intolerância crescente da guerra ao terror. Na segunda apenas lembra que o filme não poderia ser filmado em um oriente intolerante, que obviamente não aceitaria as críticas feitas. Pois é, Laub, obviamente: o leitor da Primeira Leitura também sabe disso. Para que servem as comparações, então? Pouca coisa. Diz Laub que críticas e preocupações sobre a ação americana em relação às liberdades são justas, mas o que o filme faz é sórdido e covarde, moralmente equivalente a um Michael Moore. Ora, Laub, a proibição do Alcorão é algo tão distante assim? Revelo a autora de passagem já citada no texto, bem acima, sobre os países islâmicos: é Ann Coulter, polemista conservadora absolutamente popular nos EUA – e entre a nossa direita de liberais-fascistas – quem disse: “devemos invadir seus países, matar seus líderes e convertê-los ao cristianismo”, referindo-se aos países islâmicos. Vende milhões e milhões de livros nos EUA, Laub; é o Michael Moore da direita. Escrevo o artigo num dia em que se noticia o fato de que agência de segurança americana – a NSA – sabe os números discados por milhares de americanos, em uma operação não revelada ao público americano e que teria permanecido oculta se não fosse a matéria investigativa de um tablóide. E isso dias depois de ler artigo do conservador britânico Paul Hitchens no qual é descrita a orwelliana – kafkiana? – história de um comerciante inglês condenado por não vender suas mercadorias em quilogramas, preferindo as unidades tradicionais de medida inglesas – esse aqui vítima não dos liberais-fascistas, mas dos tecnocratas da União Européia, o que só faz mudar o projeto totalitário. O filme poderia até ser descrito como alarmista por alguém que desconhecesse esses dados, Laub, e tantos outros embutidos em Atos Patrióticos explicítos ou implícitos, que vêm surgindo por todo o mundo livre. Mas atribuir a ele “sordidez” e “covardia” é não ter absolutamente a menor noção do perigo que estamos evidentemente correndo.
Enfim, são 9 páginas de Word, senhores. Mais do que suficiente; quem quiser compre a revista – que eu sempre recomendo, aliás; seria até melhor se a assinassem logo – e terá melhor dimensão do samba do liberal-doido que fez o senhor Laub, como fazem direitistas mil internet afora. E entendam um pouco a dimensão do perigo que estamos correndo: é possível que nossos filhos venham a viver na primeira ditadura liberal da História, na qual certamente não se exibirá V de Vingança no Supercine.
Felipe Svaluto Paúl (Pronto para explodir o Palácio de Havana)