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sexta-feira, novembro 18, 2005

POR QUE DISCORDO DE REINALDO AZEVEDO
Discordar de Reinaldo Azevedo não deveria ser posição cômoda para qualquer um, e certamente não é para mim. Discordar de Reinaldo Azevedo não é apenas discordar do melhor articulista do país, da mais refinada prosa no jornalismo nacional - discordar de Reinaldo é discordar da inteligência e da moral; de uma inteligência afiada e uma moral firme, que norteiam todos os seus textos e impedem que esses sejam norteados pelo pensamento fácil ou pela amoral dominante. Sim, sou fã de Reinaldo - assino a revista que publica a mais de dois anos e visito o site que a originou diariamente. E é nessa condição - que fiz questão de anunciar, abandonando qualquer pretensão de neutralidade que um texto nunca tem - que sinto a necessidade de discordar de Reinaldo e, mais do que isso, de expressar essa discordância.
Não, não discordo da análise de Reinaldo sobre o PT e o desgoverno Lula; considero inclusive a melhor análise do caso no país, que certamente seria saudada no futuro pelos historiadores do período - se o futuro nos prometesse historiadores decentes. É análise séria, suficientemente distante tanto da mídia e dos ditos intelectuais comprometidos com o governo quanto das sandices do “Lula comunista” de certa direita - para não falar nas interpretações de uma esquerda mais raivosa que, como Sader, não faz nem questão de afetar inteligência. Não é disso que discordo; é de algo, acredito, mais sério. Trata-se do texto “Véu na Cruz”, publicado na edição de Outubro da revista.
No texto - que até onde sei não está publicado on-line - Reinaldo diz que proibir a cruz em escolas francesas é um absurdo, como também o é a não citação de Deus na Constituição Européia. O argumento se funda basicamente nesse ponto: a herança cultural cristã que o continente carrega justificaria tanto a desiguladade no trato entre o véu e a cruz quanto a citação a Deus na Constituição: “A proibição do crucifixo em um caso, igualando-o a outros símbolos religiosos, como o véu muçulmano, ou o banimento de Deus porque o Estado é leigo correspondem a uma renúncia e a uma impostura”. A impostura, no caso, residiria no fato de que se pede algo em nome do laicismo apenas para esconder o politicamente correto que o norteia.
Antes de qualquer coisa é preciso analisar se o argumento é válido tão e somente para uma civilização ou se seria válido para outras também. Ou seja, se uma determinada herança cultural justificaria comportamento análogo por parte de outra civilização em relação à mesma questão. Exemplificando: torna-se hoje uma nação islâmica laica, e pode ela banir de seus colégios apenas os símbolos cristãos? Pode ela –ou melhor, deveria ela, para respeitar essa herança - incluir Alá em sua Constituição? Deve um Crescente se fazer presente na sala de um Tribunal? Esse pensamento, de tom claramente conservador - que concebe a manutenção de tradições como algo positivo num processo de renovações sociais que deveria evitar rupturas quaisquer - normalmente só é apresentado tendo em vista uma civilização, uma nação, notadamente aquela que ocupamos e para a qual o discurso é construído - não por acaso constuma se fazer acompanhar de críticas às civilizações outras, incapazes mesmo de desenvolver essa modernização, eterna ou pelo menos momentaneamente. Esse elemento não falta no texto de Azevedo, que considera as nações islâmicas “atrasadas”- no que concordo em absoluto com ele.
Mas qual seria a causa de tal atraso? Sem dúvida não há uma causa, mas causas - estaria porém eu absolutamente errado caso apontasse como uma causa geral algo como uma “rejeição à modernidade”? Rejeição à modernidade, notem bem, e não rejeição à Cruz- o Islã desenvolveu-se em todos os aspectos enquanto não apenas negava mas combatia ferozmente a Cruz em boa parte do mundo conhecido. E por onde passaria essa rejeição à modernidade? Não passaria pela rejeição ao liberalismo, às liberdades que esse consagrou - inclusa aí a liberdade religiosa? Não passa pela rejeição ao Estado laico?
Ah, o estado laico. Conquista das maiores do liberalismo, senhores, não se enganem pelo canto da sereia dos decadentistas de plantão, que espreitam nos cantos da tal direita cujo nome não ouso pronunciar. A civilização não está em declínio, como aliás nunca esteve desde que os primeiros decadentistas gregos assim anunciaram. A civilização cristã, a Cristandade, essa sim morreu - e dela herdamos, sem dúvida, os melhores frutos. Mas esses frutos foram selecionados dentre os podres que caíram da árvore, árvore que não caiu sozinha mas sim por total e absoluta incapacidade de manter-se viva- porque manter-se viva seria manter-nos no atraso a que foi condenado o mundo árabe. Retomo o ponto: todo e qualquer discurso cristão atual que atribua - e quem já não leu isso?- o atual e evidente fracasso dos países islâmicos ao caráter “infiel” dos mesmos é um absoluto ignorante em História. O Islã obteve sucesso quando era ainda mais infeso ao cristianismo do que é hoje, e quando combatia a pura Cristandade; hoje, que combate a “decadente” e “esclerosada” Europa laica e “imoral”, por que não logra do mesmo sucesso? Por que o Islã não aderiu à modernidade, a Europa sim - e nessa modernidade está imbutido o laicismo liberal, tomado às duras penas da mão da Igreja, que limitou as liberdades européias o mais que pode. Notem bem: não estou fazendo discurso anticristão aqui. A primeira república moderna que compreendeu a beleza e o caráter libertário do laicismo não foi européia: foram os Estados Unidos da América, cujos pais fundadores eram, sem sombra de dúvida, cristãos dos mais dignos.
Por que faço questão de citar isso, então? Simplesmente porque o que propõe Reinaldo vai de encontro a esse espírito laico que é uma - apenas uma, mas fundamental - das bases do sucesso da modernidade. Ao propor explicitamente a hierarquização de símbolos religiosos pelo Estado, Reinaldo dá um passo atrás - pelo menos para o Brasil do Segundo Reinado, no qual o cidadão poderia ter religião outra que não a oficial católica, mas teria toda sorte de restrições na prática dessa e mesmo na sua vida civil por conta disso. É a estratificação da sociedade em dois grupos de cidadãos, os que seguem uma determinada fé e os outros - exatamente como acontece nos países islâmicos hoje mais tolerantes. Reinaldo diz que não vê neles um modelo republicano, no que está mais do que certo; mas como não perceber então no que propõe a corrosão mesma desse republicanismo?
Quanto à Constituição, admito me faltarem subsídios para opinar mais fortemente - que poder teria essa Constituição, exatamente? Em tese, fosse apenas carta de intenções ou declaração do espírito europeu, poderia incluir, por mim, referências aos Deuses que bem quisessem - deuses bárbaros inclusos, e ai de quem me falasse que eles não fizeram também a Europa. Mas falei acima dos revolucionários norte-americanos, e uma das mais valiosas lições que eles nos legaram a essa modernidade é a seguinte: controle o poder o máximo possível. Estabeleça claramente o que pode ou não pode ser feito pelos que controlam o poder estatal e garanta meios dos cidadãos vigiarem esse poder. No complexo e distante processo de consolidação da União Européia parece-me que esses dois elementos têm sido deixados propositalmente à distância - ainda não me ficou claro exatamente que organismo político se pretende construir, com que poderes, com que finalidades. Assim sendo, qualquer acréscimo à Constituição - ou ela mesma, não vou entrar nesse mérito aqui - pode ser criar mais uma cela na qual certa liberdade será trancafiada no momento oportuno. Citar Deus na Constituição européia é diferente de citá-lo na norte-americana, que foi escrita no fim do século XVIII; citar Deus na constituição européia é abrir as portas para uma recristianização dos Estados do continente.
E certos grupos sabem muito bem disso. Os dissidentes da nossa TFP, por exemplo, já fizeram tal crítica em sua revista mensal, a Catolicismo. Sabem bem que essa explicitação do laicismo é um golpe forte contra o projeto de ressuscitar a Cristandade no qual tanto se empenham - e nessa ressurreição, Azevedo, saiba que não existiriam lugares melhores para você e para mim do que existem hoje nos países islâmicos. Aí retomo a questão da intencionalidade por trás dos discursos: se é verdade, e eu também estou certo disso, de que muita gente apóia a não-inclusão de Deus na Constituição por relativismos culturais os mais tristes ou apenas ódio anticristão, também é preciso enxergar que muita gente apóia o contrário sonhando ainda com o fim do laicismo em si. É claro que não devemos assumir uma posição com base em quem a defende ou quem a rejeita, mas é sempre bom saber a que discursos podemos servir caso não marquemos claramente nossas posições.
Fico por aqui, sabendo que muito mais poderia ter sido escrito - mas o texto já está suficientemente longo para o que pretende ser. Quem me conhece notou um diferencial aqui em relação a textos outros que escrevi nesses dois anos que esse blog completa: o tom. Mantive meu didatismo e não recorri ao deboche, ao escárnio, à sátira - não no nível em que recorro a isso comumente, e nunca tendo como alvo Reinaldo. Isso porque, para mim, esses recursos são muito mais do que meramente estéticos - são recursos morais. Eu os uso não apenas para efeitos estilísticos, mas principalmente para marcar minha repugnância ou desdém em relação ao que - e principalmente a quem - falo. Usou-os para satirizar intelectuais cultores de genocidas, inimigos da liberdade, moralistas sem moral qualquer - nada disso se aplica a Reinaldo Azevedo. Reinaldo não é um inimigo, nem mesmo um adversário político; é um indivíduo extremamente comprometido com os valores fundamentais que um homem digno deve encampar nessa tão confusa modernidade. O que fiz aqui foi apenas acusar um deslize natural em uma grande trajetória.
Felipe Svaluto Paúl(moderno, nunca moderninho)

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