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segunda-feira, outubro 24, 2005

UMA MISSA PARA A CIDADE DE ARRAS
Em 1461, a cidade de Arras foi limpa. Limpa de tudo aquilo que a impedia de ser o que estava destinada; tudo aquilo que a impedia de levar o gênero humano à sua mais absoluta comunhão com o Altíssimo. Em 1461, a cidade de Arras foi limpa de vida humana.
É essa história de limpeza que nos conta o romance Uma Missa para a cidade de Arras (Estação Liberdade), do polonês Andrzej Szczypiorski. O narrador da história é João, homem que abandonou vida de fausto na Corte em prol da cidadezinha pacata e produtora de tecidos de Arras. João é sábio, inteligente, e humano – humano, demasiado humano para os padrões de pietismo e ascese que dele exigia o padre Alberto, que logo se torna o tutor de nosso narrador. Ainda menos dado a ascetismos mostra-se o bispo de Gand, Davi, superior de Alberto e último integrante da trindade que forma o centro do romance. Três indivíduos diferentes: um preocupado estudioso de caminhos ainda muito incertos; um obcecado pela divindade e pela perdição da natureza humana; um glutão cético, quase niilista. Como outros personagens que vale à pena apresentar, temos dois grupos: a massa de habitantes de Arras, que se expressa no texto por diversas vozes mas sempre em uníssono, em tons variáveis e crescentes; e os aristocratas dessa cidade de burgueses: poucos, sempre parecem se manifestar pela figura de Farias de Saxe, nobre inteligente e curioso, que será dos primeiros a cumprir o papel estabelecido pelo coro da massa no triste drama da cidade. A representação de todos eles tenta ser o mais fiel possível aos estereótipos consagrados do medievo, e no mais das vezes acerta em linhas gerais, com um ou outro aparente anacronismo, que pode sempre ser apenas ignorância minha. O romance não exisitiria sem eles, assim como sem eles Arras dificilmente teria sido o que foi- ou o que Andrzej diz ter sido, que é o que nos importa aqui. Mas o personagem principal é outro, e ele vai se construindo com o próprio romance, à medida em que destrói a cidade: o personagem principal do romance é a loucura coletiva revolucionária.
Esse personagem não é novo; infelizmente já saiu há muito das páginas dos livros, de tal forma que romances como A Cidade... pertencem já à nobre linhagem que faz o caminho inverso, que traduz essa loucura da realidade para os livros. O personagem teve longa vida no século XX, alimentando-se qual vampiro dos milhões de corpos que sua versão atéia e comunista deixou pelo caminho. Mas é ilusão pensar que ele tenha nascido com a tomada do Palácio de Inverno, ou mesmo com a Queda da Bastilha. A Idade Média está cheia de exemplos de sua face religiosa, e Arras foi apenas mais um deles.
Abro parêntese necessário: não vou, aqui, dedicar-me ao processo de enegrecimento - sim, politicamente correto, enegrecimento - da Idade Média, tão ideológico e anacrônico; meus poucos conhecimentos são suficientes para que eu a rejeite como Idade das Trevas - muito embora sejam também suficientes para que eu a rejeite como Idade da Luz. Nisso, parece, estou em boa companhia - os grandes medievalistas têm opinião semelhante. Também não farei discursos anti-religiosos, anticatólicos ou afins - que se farte nisso a esquerda que ainda não vê as igrejas corrompidas como aliadas. O fato é que não há brasileiro consciente que não saiba existirem, aqui, no século XXI, bispos cujas opiniões, cândidas e piedosas, não fariam jorrar tanto sangue quanto nos mais tristes autoritarismos ateus do século XX. Por que então não admitir o mesmo comportamento em Alberto, e outros tantos? Há diferenças abissais que nos separam da Idade Média e que podem, quem sabe, explicar porque à época Deus foi usado em nome de barbarismos não menos vis do que aqueles pretensamente legitimados pela marcha da História recentemente; mas minha aposta continua sendo outra, que já desenvolvi em textos anteriores: a simbiose entre poder estatal e poder religioso típica do período. A culpa, em suma, cabe menos à Igreja do que ao Estado. Mas esse não é o enfoque que darei aqui; aqui pretendo analisar as semelhanças entre o ocorrido em Arras em 1461 e o ocorrido na França de 1789, na Rússia de 1917, nas universidades brasileiras do século XXI; mostrar o que liga Alberto a Robespierre a Lênin e aqueles que assumem e reivindicam o legado dos dois últimos, rejeitando o primeiro apenas por desconhecimento e ignorância. O que pretendo analisar aqui é, em última instância, o culto à morte revolucionário.
Para isso é preciso que eu diga o que aconteceu em Arras, novamente a partir de Andrzej - a verossimilhança história não entra em discussão agora; o que importa é o modelo. Falando através de João, Andrzej nos conta a história: dois anos após um surto de peste, a cidade de Arras é acometida por outro surto. Tudo começa com a surpreendente morte de um cavalo, sadio, forte, encontrado morto ao amanhecer. A cidade é pequena e a morte de um cavalo bem-cuidado circula rápido; não há sinais de doença ou machucado, e as opiniões se multiplicam até que a mais razoável e inevitável é proferida: um judeu teria amaldiçoado, no dia anterior, o proprietário do cavalo. O proprietário do cavalo não se dava bem com o dito judeu; o cavalo, repito, não tinha sinais de doença ou machucado; um judeu é, por definição, mais propenso a flertar com as artimanhas do Diabo. Essa linha de pensamento extremamente lógica e razoável - a ciência da época, se poderia dizer sem qualquer ironia - leva à condenação prévia do semita. Apesar disso, Arras é cidade cristã e não pagã, e sua justiça opera por bases dignas dessa distinção: o judeu é levado a julgamento, quando sua culpa, apesar das evidências, é mais uma vez veladamente confirmada. Percebendo a condenação prévia, o judeu é encontrado morto na manhã seguinte, enforcado no Paço da cidade.
O suicídio do judeu abala o povo, que pede, em momento último de sanidade, a prestação de contas por parte do Conselho da cidade. Entra aqui Alberto, o padre, o retórico, o místico; Alberto conduz o Conselho magistralmente, aqui e ao longo do romance, tendo por fio condutor de sua lógica a expiação da culpa: o judeu, se culpado era, teve o que mereceu; se culpado não era, porque o suicídio? Em todo caso, o julgamento caberia a Deus; o povo de Arras havia atuado com a intenção única de favorecer o Altíssimo, e isso bastava para que os atos impuros e errôneos fossem perdoados. Percebam: o julgamento de Deus não mais se dá a partir de uma característica moral inerente ao ato; dá-se a partir das intenções do ato, ou seja, favorecer a Ele o triunfo na cidade de Arras. E isso basta para o banho de sangue que se segue.
A comunidade judaica é a primeira vítima; tendo mensageiro dela não abaixado a cabeça o suficiente perante o Conselho, toda sorte de anti-semitismo católico é recuperada e a comunidade não tarda a arder em chamas. Mas Alberto não se contenta: acreditar que o Mal de Arras está restrito ao sangue judeu é um absurdo, uma maldade; ninguém pode acreditar que se limpa ao limpar a cidade do sangue semita. O Mal estava também entre os cristãos; e seria também preciso limpá-los.
Que semelhança o processo guarda com as revoluções tão notórias da contemporaneidade, daquela que a inaugurou até as comunistas que se sucederam? O inimigo primeiro é externo, integra um grupo que está alheio àquele que de fato compõe a boa gente da sociedade - os judeus, os aristocratas ou os burgueses, em Arras, França ou Rússia; elimina-se esse grupo mas não se elimina a sede de sangue: é preciso encontrar o inimigo no próprio meio, pois o Mal se insinua terrivelmente mesmo entre os escolhidos. É quando morrem os cristãos em Arras e os revolucionários - agora tornados “reacionários” - em França e Rússia. Nada se purifica sem o apelo a um inimigo objetivo, seja externo ou interno.
Mas o inimigo interno não se restringe ao interior do próprio grupo de escolhidos; está, sim, no interior de cada indivíduo que integra esse grupo. É preciso que os cristãos de Arras se penitenciem, que confessem seus pecados; é preciso que os jacobinos abandonem seus preceitos e sigam a voz do povo como único Norte; é preciso que os intelectuais e burocratas, na Revolução Chinesa, façam a autocrítica e se arrastem com placas em seus pescoços que expressam os crimes cometidos. O homem inimigo de si mesmo, as delações, a paranóia; sangue, sangue e mais sangue.
Notem, senhores, que não estou atribuindo maldade a ninguém aqui; quem atribui maldade é Alberto, os jacobinos e os comunistas, que vêem o Mal incorporado em etnia ou classe. Alberto não fez o que fez porque era mau; fez o que fez porque ambicionava o Bem Absoluto. Também assim pensavam os revolucionários franceses, acredito, em sua maioria; muitos dos comunistas que defenderam sua ideologia genocida também sempre estiveram muitíssimo bem-intencionados, e não há ironia alguma aqui. Não compreender isso é não compreender a revolução; o PT não adotou métodos espúrios para chegar ao poder, como certa leitura mal-feita e tardia de alguns recentes convertidos ao antipetismo quer nos fazer crer. Para o PT, no momento mesmo da adesão ao método, esse se tornou virtuoso. Repito, senhores, e assimilem: para o PT, no momento mesmo de adesão ao financiamento ilegal e à compra de deputados, esses métodos foram cobertos pelo manto da virtude. Por que, lembrando Alberto, o Mal é Bem, ou pelo menos é perdoado, quando feito em nome de Deus; o Mal é Bem, ou pelo menos é perdoado, quando feito em nome do partido.
Poderia escrever muito mais sobre isso; o livro é rico em exemplos, em metáforas sofisticadas, em discussões éticas. Mas não pretendo analisar o livro; pretendi sim partir dele para analisar a revolução, aquilo que permanece comum a processos revolucionários que aos olhos de muitos são inteiramente distintos. Pretendi mostrar como a moral revolucionária estabelece precisamente a distinção entre fim e meios; como há uma seqüência natural nas perseguições que vai do inimigo externo até a assustadora autoperseguição, tão bem analisada em romance outro, 1984 de Orwell; que a ideologia revolucionária não se alimenta necessariamente do Mal e do interesse próprio, pelo contrário - alimenta-se mais comumente da busca pelo Bem e de um altruísmo raro e genuíno.
Mas então, Felipe, qual a solução? As revoluções estão terminantemente condenadas? Não há como conceber revolução sem essas características? Há, sim: e o exemplo máximo disso é a revolução norte-americana. Mas há componente diferencial entre essa revolução e as sangrentas já citadas, elemento muito bem analisado por Hannah Arendt em Sobre a Revolução : a revolução norte-americana manteve intocada a questão social. Sim, senhores: uma revolução que não se queira um genocídio só pode acontecer, mostra-nos até agora a experiência histórica, caso não toque na questão social. Trazer a pobreza para a cena política é trazer a paixão para a cena política; é abrir as portas para a compaixão, a paixão pelo outro, que justificará toda sorte de medidas capazes de eliminar essa pobreza, pobreza cruel e aterradora, que clama aos Céus por vingança. É tornar o pobre a nova justificativa, como Deus foi para Alberto e o sentido de determinismo histórico foi e é para muitos comunistas.
A pobreza, senhores, não é algo bom. Em uma sociedade liberal, diminui o leque de escolhas disponíveis ao indivíduo, diminuindo assim a liberdade geral de que goza essa sociedade. Não é, tampouco, algo natural: é possível eliminar a pobreza, e a História nos mostra diversas formas de fazer isso; o interessante é que nenhuma dessas formas passou, até hoje, pela ação revolucionária. A revolução matou o quanto queria e jamais entregou o que prometera; quando muito, conseguiu eliminar a miséria - pagando preços que nenhum ser vivente ainda deveria se dispor a pagar e conseguir se olhar no espelho em seguida. O interessante é que os grandes cultores da História jamais se mostraram por demais pacientes para esperá-la; fizeram revoluções que mataram, estima-se, 100 milhões de pessoas apenas para dizer, posto o fracasso absoluto delas, que não havia chegado o tempo para fazer o que fizeram. Já eu sou muito mais simpático ao tempo; a solução para a pobreza soma liberalismo e tempo - tempo proporcional, não há como deixar de dizê-lo, ao tempo em que o Estado contribuiu para gerá-la e perpetuá-la. Não é tarefa fácil; mas nada é fácil quando se abandonam as utopias sanguinárias e seus Nortes justificadores em prol de uma genuína responsabilidade quanto ao futuro da espécie humana.
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A Universidade Federal Fluminense continua em estado de semi-greve. Aqui não me interessam os méritos das greves, de professores, técnicos ou funcionários; concordo com algumas reivindicações, discordo de outras, não tenho conhecimentos para opinar sobre a maioria. Interessa-me aqui o que me interessou no texto acima e também no texto abaixo: como se comportam os militantes revolucionários, qual a natureza deles, como sustentam suas opiniões, que valores carregam. É moda em certa mídia, a mesma que eles chamam de “burguesa”, uma exaltação da juventude engajada, militante; fingem não saber, ou não sabem mesmo, que no FORA COLLOR juntaram-se tanto pessoas as mais dignas quanto stalinistas de quatro costados. Pois bem: considero meu dever aqui evidenciar a certas parcelas da sociedade o que exatamente são esses militantes, as noções que têm de democracia, liberdade e direitos; aquilo que eles defendem. É pretendendo novamente contribuir com esse necessário esclarecimento da opinião pública que divulgo relato sobre assembléia do DCE, destinada a votar a manutenção ou não da greve estudantil. O relato é parcial, contado por defensores do fim da greve, mas notem que ninguém do outro lado se manifestou para contestar o descrito. Por que não se manifestam? Por que para eles nada de errado houve; se é para defender a greve, tudo é válido. A moral está no fim, não nos meios...é o mote de todo comunista que se preze, ou ele não sabe o que é comunismo.
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Olavo de Carvalho decidiu xingar alguns anti-olavetes. Em uma tarde de sábado, aparentemente sem mais o que fazer, achou por bem passar em comunidade a ele contrária e xingá-los todos, juvenil e puerilmente. Li as mensagens e me comprometi: vou excluir o link para a página de Olavo aqui; não é nada, não é nada - não é nada, mas é o que poderia fazer para mostrar meu repúdio à atitude. Pois bem: pensei um pouco minutos atrás e decidi não fazê-lo. Por que? Agora concordo com o que Olavo fez? Achei divertido? Não; discordo do que ele fez e penso que alguém achar aquilo divertido é de uma infantilidade ímpar até para o Orkut, e quem usa o sistema sabe bem da dimensão que essa frase carrega. O fato é que decidi ler com mais atenção a comunidade após o ocorrido e constatei o que já sabia: há por lá seres dignos, que tentam em vão, vez ou outra, um debate mais sofisticado ou ao menos um pouco de sanidade; são porém tragados por uma esmagadora maioria de imbecis porcamente alfabetizados que se entretém com piadas as mais deploráveis sobre tudo aquilo que não conseguem compreender. Um dia ainda vou me dedicar a recolher as sandices que escrevem, e que superam em muito qualquer sandice que os próprios com sofreguidão ficam a buscar nos escritos de olavetes. Não sou um olavete, seja no sentido pejorativo atribuído pelos próprios olavetes ou seja no sentido posterior e orgulhoso dos fãs incondicionais de Olavo. Continuo a ler com freqüência o que ele escreve, concordando cada vez menos, mas ainda concordando; nada dele li quanto à filosofia, e por isso não julgo; não o conheço pessoalmente, e qualquer análise que tenha feito ou tente fazer da pessoa dele só pode levar em conta o mínimo que penso se poder depreender de uma pessoa pelo que ela escreve. Também não sou um anti-olavete, em qualquer dos sentidos possíveis. Sou alguém que tenta compreender o mundo e para isso usei e continuarei usando os textos de Olavo que considerar pertinentes; reivindico meu direito a isso, e com base nele e na imbecilidade dos anti-olavetes decido pela manutenção do link para a página de Olavo.
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Reinaldo Azevedo disse recentemente e reforço: o povo, na maioria das vezes, não sabe de nada. Mas triste é o país em que os jornalistas não sabem de nada; houve um jornalista, um único jornalista, do SIM ou do NÃO, que tenha antecipado minimamente a vitória arrasadora do NÃO no referendo? Mesmo depois das primeiras pesquisas que indicavam vitória do NÃO, os jornalistas, em sua maioria defensores do SIM, ainda se mostravam receosos em admitir a derrota. Antes disso, então! O que se ouvia era festa no SIM pelas pesquisas feitas meses antes e que de nada serviram; e no NÃO a maioria já parecia considerar a derrota como certa. Confesso: eu sempre tive esperanças, mas nunca acreditei na vitória seriamente até a primeira pesquisa. Mas eu sou um blogueiro e estudante; não sou jornalista, menos ainda cientista político - e as duas categorias comeram mosca mais uma vez. Por que? Sem mais palavras: porque são semi-analfabetos, em sua enorme maioria. Passam uma semana para escrever texto infinitamente inferior ao que de mais triste Reinaldo Azevedo produza em seus dias de maior infelicidade; uma boa medida para o jornalismo brasileiro, didática, educativa - que todas as colunas fossem diárias. Seríamos submetidos a peças ainda mais deploráveis, mas de repente eles aprendiam algo - em duas ou três gerações, pois eu sou otimista.
Felipe Svaluto Paúl(qual o próximo referendo?)

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