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sexta-feira, maio 20, 2005

A ÉTICA DO TRABALHO E O TRABALHO DOS AÉTICOS
O tema da ética do trabalho já há muito é discutido nas ciências sociais, e de certa forma incorporou-se também ao linguajar pretensamente culto, notadamente aquele proferido por nossos jornalistas de formação tão deplorável quanto a dos demais profissionais do país - com a singularidade de que se atribuem a capacidade de metamorfosear a estupidez em luz quando passa pelas tortas construções que realizam. Alquimistas modernos, porém, não são apenas os jornalistas; há quem decida fazer graça até com conceito sociológico. Não conseguindo extrair sorriso algum que não dos estúpidos pares de ofício e dos mais simplórios membros de uma pretensa elite, que se crê também portadora do discurso culto, nosso alquimista em especial não vê porque deixar de se consagrar também pelo caminho inverso ao habitual: se é consagrado transformando a estupidez em ouro (de tolo), por que não transformar o ouro em estupidez- e ouvir as loas do público?
O problema é que vez ou outra se dá azar: o ouro de tolo tem brilho mínimo se comparado ao ouro legítimo; e por vezes a comparação dá tão pouco trabalho que até a preguiça do brasileiro cede diante do esforço mínimo necessário à desmistificação. Isso ocorreu com Henfil, e ocorreu em O GLOBO.
Em terça-feira ida - dia 5 ou dia 12 do mês corrente- tira assinada por Henfil se faz presente no jornal O GLOBO, como de praxe. Confesso não saber de qual Henfil falo; seriam essas tiras cunhadas por um parente do Henfil original, o do infame trocadilho musical, ou seriam antigas tiras, de autoria do próprio? De toda forma a questão aqui não cabe: sendo de autoria do irmão menos famoso do marxista convertido em distributivista ou sendo de autoria de membro da prole ou parente outro...só teríamos a confirmação do dito popular acerca do peixe e seu filhote. Uma rosa não deixa de ter perfume caso outro nome receba, dizia o bardo; a sandice não vira virtude em decorrência de quem a profere, por maior que se queira a alquimia.
Pois bem: na tira citada do senhor Henfil, que se vê? Um personagem, de nome Graúna - sim, o pássaro - surge a falar acerca da ética do trabalho. Diz que ela - citada sem ser explicitada; salvo engano, se falava em “diligência”- é necessária, que leva ao progresso e que afasta o ser do mau caminho; o personagem aparenta ar solene e discursivo, e é observado por personagem outro, Zeferino. Eis que de súbito Graúna faz a esperada mudança no discurso: pergunta-se, ainda em ar solene, o que seria de alguém que não se pautasse por tal ética...pergunta retórica, por ela mesma respondida: o indivíduo se tornaria um “Chico Buarque, um Di Cavalcanti, Portinari”, escrito nessa ou em outra ordem. A tira finda com Graúna a sair de cena, triunfante e sarcástico sorriso exibido, enquanto Zeferino faz a colocação última: “e só tem 13 anos... ô idadezinha”.
Não há como dizer que o autor não saiba se comunicar com o seu público; estão ali, colocados muito claramente, todos os sinais que permitem ao leitor habitual de Henfil compreender a mensagem passada; o socialista-caviar lê e se rejubila, glorificando na mesa de bar ou no ócio da repartição pública a genialidade do artista. O mais simplório marxismo é expresso quase que em sua totalidade por dois personagens, feições e traços infantis, em discurso tão infantil quanto. Henfil, vítima e contribuinte da pobreza intelectual brasileira, só tem pecados que serão lidos como virtudes. Vivesse nos EUA, país não por acaso criticado vez ou outra nas tirinhas do sábio, seria ainda menos que um Michael Moore. Mas nossa densidade intelectual é de tal forma que seres como Henfil não afundam, mas bóiam. Se é que o leitor me entende.
Vejamos mais atentamente o discurso da tirinha: a ética do trabalho é apresentada sob viés negativo; um indivíduo que pautasse sua existência por ela se veria tolhido em seu desenvolvimento artístico e, pressuponho, espiritual - no único sentido possível para um ateu. A denúncia é feita por um personagem jovem, o que se faz questão de enunciar; fica bastante explícita a associação entre juventude e contestação. Uma pedra basilar de certo esquerdismo está aqui: a crença de que elites - a burguesia, a elite branca, o patriarcalismo ou outra nomenclatura à ocasião apropriada - são responsáveis por construir um discurso ideológico e uma cultura legitimadoras de seu processo de exploração, discursos e culturas esses que seriam impingidos ao restante da sociedade através de instituições e ocasiões a isso propícias - as escolas seriam o principal exemplo, veículo máximo da ideologia oficial das “classes dominantes”. Só através disso se pode explicar a ética do trabalho, que nada mais seria que uma ética condizente e necessária aos tempos burgueses, notadamente no controle e desenvolvimento das relações de produção típicas da “sociedade burguesa” A denúncia dessa ética é feita por jovem, ainda não suficientemente “doutrinado” nos padrões estabelecidos. Em oposição a tal ética parece se colocar uma “ética artística”, obviamente jamais explicitada- mas sempre “livre”, pois é necessário vez ou outra roubar do liberalismo suas palavras-força e reconvertê-las exatamente naquilo que não são. Ou, como no caso, simplesmente usá-las como jargões vazios, sem se dar ao trabalho de explicar o que seria tal liberdade.
Mas a singularidade máxima fica por conta do cinismo do autor, característica comum aos socialistas-caviar que se dispõem a enveredar pelo caminho das artes. É preciso ser uma potência intelectual para saber que a existência de Cavalcantis e Buarques inúmeros deriva apenas, e tão e somente, da observância da ética do trabalho por outros setores da sociedade? É preciso ser um erudito para concluir que o fato de senhor Henfil, qualquer que seja, ontem ou hoje, ter podido sobreviver tão e somente através de sua arte se deve exatamente ao fato de que tal arte é consumida por mercado que aufere seus ganhos do trabalho ou das propriedades produtivas? Mas talvez esteja eu sendo injusto com o trabalho; poucos são os trabalhadores que lêem Henfil. O cidadão é consumido pelos socialistas-caviar; classes média e alta, os mesmos burgueses aviltados. Henfil sobrevive, ou sobreviveu, do estranho masoquismo da pretensa elite nacional, que paga- e muito- para ser ofendida das piores formas possíveis. Não há como recordar certo catolicismo aqui, por mais singular que pareça ser a primeira vista: é sabido que em determinadas situações, quando das sociedades de Antigo Regime, ricos doavam seus bens quando a morte se avizinhava, para a Igreja ou instituições de caridade. Isso era considerado uma forma de pagar por possíveis pecados cometidos, entre eles o da riqueza. Parece que nossa elite raciocina de forma similar: ao custear Henfil, parece que acreditam estar se expiando dos pecados cometidos, entre eles também o daquilo que crêem ser riqueza.
Pois isso é Henfil, pai, filho, irmão ou papagaio: um dos muitos expiadores de pecados da elite nacional. Henfil, Buarque, Di Cavalcanti e tantos outros.
Não há como dizer que não fizeram o muito bem pago serviço.
***
Ironia do ano até o momento: Fernando Morais foi dormir no Brasil e...acordou em Cuba. Diria que é kafkiano, não fosse já tão aviltada a palavra.
Não, não estou defendendo o ocorrido. A censura é absurda, mesmo a alguém como Fernando Morais.
Mas eu realmente gostaria que algum jornalista, mesmo aqueles tão fraquinhos já citados, se desse ao trabalho de investigar com o escritor quais critérios tornam legítima a censura estatal.
Guantanamera!
Felipe Svaluto Paul (caviar, mas não socialista).
PS: Sim, artigos escassos aqui. Um sem número de compromissos acadêmicos, participação em Os Progressistas, leituras inúmeras...está realmente difícil atualizar. Mas não creio que meus leitores possam reclamar muito; há ao lado desse texto um sem número de links, tratando de temas pertinentes sob ótica no mais das vezes similar a minha. Eu mesmo não consigo ler tudo que nesses links é publicado, nem mesmo caso faça criteriosa seleção de artigos; não creio que meus leitores tenham tempo para lê-los também. Nas férias de julho tentarei atualizar com maior freqüência, talvez até com impressões político-culturais da bota e seus socialistas-fetuttini. Até lá, tenham paciência.

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